sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Educar pra quê?

Que educação é essa que forma um mundo de desigualdade?

Educar pra quê?

Frei Betto



Falar de educação é falar de sociedade. Um dos reflexos da concepção cartesiana que temos da educação é que as distinções são mais acentuadas do que as conexões. Por isso, hoje se fala em concepção holística da educação, de modo a reatar os nós desatados pela modernidade cartesiana.

Reza a Constituição brasileira: "A educação é de responsabilidade da família, da escola e da sociedade". Às vezes, imagino os promotores, o Ministério Público, entrando com recurso junto à União, penalizando a sociedade por não cumprir seu papel educativo.

Em nações indígenas tribalizadas, a educação de uma criança depende de todo o conjunto da comunidade; não é responsabilidade da escola, que não existe, nem dos pais, porque toda a comunidade é concebida como sendo a família da criança e do jovem. É evidente que essa utopia não é mais realizável nas nossas cidades que, inclusive, foram concebidas, não em função da humanização das pessoas, mas como burgos. Daí o nome "burguês": aquele que
vivia numa confluência, num entroncamento de caminhos, em que se dava a troca de mercadorias.

O que marca a origem das cidades no Ocidente, tais como as conhecemos hoje, é o interesse econômico. Todo planejamento viário da cidade é feito em função do fluxo da economia, e não da qualidade de vida dos cidadãos. Embora o Brasil tenha, hoje, mais de 80% da sua população na cidade, ainda resistem no campo quase 20%. E é no campo que se encontra o maior contingente de mão-de-obra entre os 64 milhões de trabalhadores brasileiros. Como é
possível a agricultura ainda representar o setor que mais absorve mão-de-obra (23%, seguindo-se o setor de serviços, que emprega 21%) se há tão pouca gente no campo? Infelizmente, isso é perfeitamente explicável se trabalharmos com o fator bóia-fria. Pessoas que, todas as madrugadas, se deslocam de um centro urbano para trabalhar, ou pessoas que passam períodos na zona rural em busca do seu sustento.

Isso não significa que o Brasil tenha um mundo urbano em contraposição ao mundo rural, pois há uma progressiva unificação da mentalidade do brasileiro graças ao avanço dos meios de comunicação.

Nessa rede de comunicação, o veículo mais poderoso é a televisão. Segundo o Censo do IBGE de 2000, 86% dos lares brasileiros têm televisor; ou seja, de cada 100 brasileiros, 86 têm televisor. Dados da Unicef (2002) revelam que, no Brasil, os adolescentes passam, em média, 4 horas por dia em sala de aula, e 3 horas e 55 minutos diante da TV; ao contrário da média européia, que são 8 horas em sala de aula e menos de 4 diante da TV. As duas médias
estão muito distantes do índice de Cuba, o país mais avançado em educação em toda América Latina, onde os alunos passam, em média, 12 horas por dia na sala de aula.



Cidadania X consumismo



Há uma dicotomia ou tensão entre o propósito educativo e o conteúdo predominante na TV brasileira. Nada contra as emissoras; o problema está no conteúdo que, salvo raras exceções, visa formar consumidores, e não cidadãos. De outro lado, estão a escola, a família, as Igrejas que, em princípio, têm o propósito de formar cidadãos. Isso explica o nosso desconforto como educadores.

Com muita freqüência, educadores me perguntam: "Por que, na nossa época, éramos tão disciplinados em sala de aula, e agora o pessoal é tão agitado?". A resposta, a meu ver, é óbvia: porque, agora, a garotada gostaria de poder mudar o professor de canal. Agüentar por quarenta, cinqüenta minutos, aquele tom monocórdio não é fácil, principalmente quando o professor não é dotado de pedagogia para tornar atrativa a sua presença em sala de aula.

A TV brasileira é uma concessão pública; o Estado deveria, em nome da sociedade, e como provedor, não só de nosso bem-estar, mas também do nosso crescimento cultural e espiritual, exigir das emissoras parâmetros educativos. Isso não acontece.

As emissoras são o melhor presente que umas poucas famílias podem receber desse Estado clientelista, que privilegia determinados segmentos da sociedade. Até porque não se exige dessas famílias, "donas" de canais de TV, aquele mínimo que se espera em qualquer país decente, ou seja, a devolução aos cofres públicos de uma parte da fabulosa verba de publicidade. Imaginem se 10% dessas verbas fossem destinados à educação fundamental! Seria uma revolução, principalmente considerando que, das verbas destinadas ao ensino
fundamental, apenas 8% do montante chegam ao segmento que representa os 20% mais pobres da população. Das verbas destinadas ao ensino superior, quase a metade vai para os 20% mais ricos da população.

É um funil às avessas. Ou se muda isso, modificando a política de orientação educacional deste país, ou continuaremos remando contra a maré e fazendo um trabalho inócuo, porque as forças contrárias são mais poderosas do que os nossos bons propósitos.

No caso da TV, a questão é séria, porque o conteúdo é hegemônico. Estou falando da TV aberta, majoritária, que atinge 86% dos domicílios brasileiros. Não me refiro à TV de assinatura, mais qualificada. A TV aberta exerce um papel deseducativo de desinformação e deformação das novas gerações brasileiras. Porque tem como prioridade fortalecer o mercado. O que rege a grade de programação da TV é, justamente, aquilo que dá Ibope, porque
significa maior contingente de consumidores.

Não importa se essa prioridade consumista fere princípios, parâmetros e elementos éticos que a família, a escola, a Igreja e a sociedade querem incutir nos jovens. Importa aumentar o índice de consumo. Isso não seria tão grave se não houvesse um antagonismo. Não é uma competição, é mais do que isso - há um conflito ético entre a formação e a deformação de uma pessoa.

Uma pessoa não pode ser, simultaneamente, cidadã e consumista. Há um momento em que uma dessas dimensões é prioritária na sua vida. A publicidade sabe muito bem que, quanto mais culta uma pessoa - cultura é tudo aquilo que engrandece o nosso espírito e a nossa consciência - menos consumista ela tende a ser. Um pequeno exemplo: quem gosta de música clássica certamente não contribui para enriquecer a indústria fonográfica. O que garante as
fortunas que rolam nesta indústria é, a cada dia, o consumidor experimentar uma nova banda, um metaleiro diferente; porque, se não for assim, se ele gostar de meia dúzia de compositores clássicos, o consumo será menor, pois comprará apenas as novas interpretações dos compositores da sua preferência.


A TV aberta não trabalha visando favorecer a cultura, porque cultura cria discernimento crítico; ela trabalha com o entretenimento, que esgarça os nossos princípios éticos. O que é entretenimento? É aquele conjunto de enlatados que vem dos EUA, filmes violentos, desenhos animados, programas humorísticos etc. Em resumo, aquilo que vemos no domingo, Dia Nacional da Imbecilização Geral. Imbecis o apresentador, os participantes e a platéia,
que fica naquele senta-levanta, aplaudindo. Todos obedecem a monitores invisíveis, que o telespectador não vê em casa. Imbecis nós que, em vez de passearmos com a família, ficamos sentados na poltrona, achando que estamos absorvendo alguma coisa útil, e com isso quebrando o diálogo familiar, o divertimento das crianças, o contato com a natureza, e uma série de atividades saudáveis.

E o pior, eles avisam: Sai debaixo! A gente não sai e acorda na segunda-feira com ressaca espiritual. Ou alertam: cuidado, Alta Tensão! Mas continuamos insistindo e marcando ponto no Ibope. Qual é o segredo do entretenimento? Quem trabalha em publicidade, ou em roteiros de enlatados, conhece a alquimia. Não é fácil criar entretenimento, porque não se pode dar
sustança ao espírito e à consciência do público; deve-se dar, apenas, toques sensitivos, capazes de hipnotizar o público.

O rádio, por exemplo, é universal; pode-se ouvi-lo dirigindo carro, cozinhando, plantando etc. A TV, não. Ela exige uma atitude de submissão, provoca hipnose. Tenho de estar diante do aparelho. Aliás, já passa da hora de as escolas levarem a TV para dentro da sala de aula, como fazem com o texto. Debatendo o conteúdo das imagens, os alunos educarão o próprio olhar, com mais discernimento crítico.

Como se faz a alquimia do entretenimento? Graças aos conhecimentos do doutor Freud, sabemos que o nosso inconsciente gira no diapasão início da vida/fim da vida. Somos o único animal que sabe que nasceu e que vai morrer. Nenhum outro animal tem essa consciência. Todos os animais são contemporâneos de seu presente. São todos aqui e agora. Nós, não só oscilamos em nível do consciente, como temos um grande risco na vida, que é o de não ser
contemporâneo do próprio presente, como ensina, por exemplo, a tradição budista. Envelhecemos mais rapidamente quando vivemos na nostalgia do que passou, ou na ansiedade do que virá, e não somos capazes de ser presentes na atualidade. Por isso, gosto muito do poema que diz: "O passado passou / o futuro virá / mas isso, aqui e agora, / é, de fato, um presente". Porém, é preciso saber curti-lo.

O diapasão da indústria do entretenimento é transformar o início da vida em sexualidade, pornografia; e o fim da vida, a morte, em violência. Ligam as duas coisas e eis o êxito, eis o crescimento do Ibope, eis a formação de consumidores.

Gostamos de ser espectadores de algo que é instigante no nosso inconsciente e mexe com as profundezas do nosso psiquismo. Mas não podemos estar permanentemente numa atitude de Eros. Ainda não chegamos à fase de humanização em que as estruturas do nosso cérebro, tributárias de répteis e primatas, tenham sido inteiramente superadas. Costumo alertar, quando me dizem que precisamos "escolher políticos que tenham diploma de curso universitário", que a bomba de Hiroshima e Nagasaki foi construída por grandes cientistas, todos eles com PhD em física, química etc.; os fornos crematórios de Auschwitz foram construídos por engenheiros; as armas biológicas, por médicos. Ou seja, o fato de alguém ter alta qualificação do ponto de vista erudito, do ponto de vista acadêmico, significa pouco.



Sentido da educação


Educação é formar pessoas verdadeiramente humanizadas e felizes. Isso significa formar pessoas com muita ética, princípios e projeto de vida. Sem isso, não é possível ser humano e ser feliz. Que educação é essa que forma um mundo de desigualdade? Que educação é essa que forma um mundo em que a competitividade é um valor acima da solidariedade? Que educação é essa que, ela própria, é fator de estímulo à competitividade, na forma de provas,
prêmios, humilhação dos que não passaram de ano, dos que não avançaram - e que são a maioria? A maioria não tira o primeiro lugar. Lembro do quanto sofri no curso secundário, no ensino fundamental, por não ser premiado, não ter meu nome no quadro de honra, não receber medalha, não figurar entre os primeiros da classe, como narro em meu livro Alfabetto ­ Autobiografia Escolar (Ática). Considerava-me um perdedor. A educação me ensinava a engolir a minha humilhação de ser um perdedor. Ora, que educação é essa que não consegue trabalhar a formação de princípios éticos?

Criança em Belo Horizonte, eu ia ao centro da cidade comprar prego para os meus carrinhos de rolimã ou para as manivelas que eu mesmo fabricava. Naquela época, felizmente, não existia a palavra griffe, a gente montava os próprios brinquedos. Meu pai alertava: "Não passe em determinadas ruas do centro". Era onde ficava a zona boêmia da cidade. Como um pai vai dizer isso, hoje, a um filho se, ao ligar o televisor, a zona boêmia, o bordel inteiro, é despejado dentro de casa? Um dos desafios mais difíceis e urgentes a ser enfrentado é a formação sexual e afetiva das crianças e dos jovens.

Passei 22 anos nos bancos escolares e nunca as escolas que freqüentei abordaram as situações-limite da vida, pelas quais todos passamos, ou haveremos de passar. A escola nunca falou em dor, perda, ruptura afetiva, falência, morte, espiritualidade. Felizmente, só estudei quatro anos em colégio religioso; os outros foram em escola pública. Nos quatro anos como aluno de colégio religioso ouvi falar de doutrina e moralismo, mas não da experiência de Deus, de valores evangélicos, de amor preferencial aos pobres.

A escola nunca falou de sexualidade; hoje, fala de cuidados higiênicos, para evitar doenças sexualmente transmissíveis. E a educação afetiva? A educação para o amor? A relação afetiva é determinante na vida de todas as pessoas. Atualmente, a média brasileira de duração do matrimônio é de sete anos. (Quem passou dessa média, pode comemorar, porque já está no lucro.) É curioso que algo tão determinante não tenha um mecanismo educativo que
concorra para essa formação.

Mais curioso é que há uma exceção paradoxal: a única escola de formação afetivo-conjugal que existe em todo o país é a Igreja Católica, que exige o celibato de seus padres e religiosas, mas não celebra casamentos sem que o casal faça o curso de noivos. Felizmente, a maioria dos cursos é dado por leigos.

Certa vez, uma amiga me disse: "Betto, não vou batizar os meus filhos, nem educá-los em nenhuma religião. Eles, aos vinte anos, decidam se querem seguir alguma religião e qual. Fui aluna de colégio de freiras e paguei análise muitos anos para me livrar de tabus e recalques que me foram incutidos". Eu disse a ela: "Você, como mãe, e seu marido, como pai, têm
todo o direito de educar os filhos como bem entenderem, mas não concordo com a sua ótica. Você não tem escolha: ou você educa, ou a Xuxa educa, não há alternativa. Se você não der educação religiosa a seus filhos - educação aqui entendida como valores evangélicos, princípios éticos, abertura ao transcendente -, a Xuxa vai ensinar a eles o que é certo e errado, o que é bom e ruim, quem é o bandido e o mocinho, qual é o jogo ético, aético ou
antiético da vida social. Você não tem escolha, ou seja, a formação da subjetividade é uma questão educativa da maior importância".

A escola, na sua tradição ocidental e brasileira, por razões históricas e cartesianas, esquece a questão da subjetividade, uma das duas dimensões essenciais do ser humano.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de "Essa Escola chamada Vida" (Ática), entre outros livros. http://www.correiocidadania.com.br



Fonte:http://www.defesadotrabalhador.com.br/

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