quinta-feira, 31 de julho de 2008

Sobre a Cartografia dos Estressores

Dra. Hilda Alevato

“Para um cartógrafo, a cidade de Boston é descrita através de um mapa de Boston [...]; nesse caso, o objeto Boston é construído com a ajuda de procedimentos cartográficos e não pelo fato de chegarmos a um consenso sobre as concepções dos motoristas de táxi a respeito de Boston. [...] Não é possível conseguir uma imagem científica do traçado de Boston pela simples consulta aos motoristas de táxi”(1)

O que é cartografia?

Segundo a Associação Cartográfica Internacional (ACI), cartografia é:

Conjunto dos estudos e operações científicas, técnicas e artísticas que intervêm na elaboração dos mapas a partir dos resultados das observações diretas ou da exploração da documentação, bem como da sua utilização.

Uma cartografia é a representação escrita de um mapa. Ciência, técnica, mas também arte. Esse é o sentido associado à idéia de uma Cartografia de Estressores: um mapeamento artesanal de um conjunto de indicadores e referenciais, cujo entrecruzamento favoreça uma compreensão mais profunda e abrangente sobre a realidade de determinado ambiente de trabalho e suas ameaças à saúde. Seu maior objetivo é facilitar a “localização”, a identificação, ou melhor, servir de referência para a ação sobre aqueles pontos nos quais se concentram as mais potentes ameaças à saúde oferecidas pela presença desconhecida e/ou descontrolada de estressores no ambiente de trabalho.

A Cartografia não é uma resenha de outros instrumentos, nem um esforço por recolher todas as informações possíveis. O produto que se busca, com sua aplicação, é uma totalidade originada em contribuições que possibilitem a indicação de melhores caminhos de superação daqueles focos de sofrimento impostos pela vivência penosa, em determinado ambiente de trabalho.

A Cartografia dos Estressores foi criada pela equipe que coordeno, no Núcleo de Educação e Saúde no Trabalho (NEST/LATEC/UFF), há aproximadamente três anos. Suas primeiras aplicações aconteceram em pequenos grupos de trabalho, a partir da constatação que diferentes indicadores inter-relacionados poderiam oferecer uma leitura mais fidedigna e consistente daquilo que se buscava compreender, ou seja, os estressores mais influentes em cada ambiente laboral, com base na “Taxonomia dos Estressores mais fidedigna e consistente daquilo que se buscava compreender, ou seja, os estressores mais influentes em cada ambiente laboral, com base na “Taxonomia dos Estressores"(2). Sua construção como método de investigação está em desenvolvimento, inclusive numa versão de “análise de dados secundários”(3), considerando a variedade e quantidade de dados e indicadores já disponíveis em determinado ambiente de trabalho. A Cartografia é complementada com os resultados do, Inventário Psicossocial de Estressores (IPE), visitas de base proxêmica (4) e entrevistas semi-estruturadas.

Um ponto importante a destacar é o caráter dinâmico da “Cartografia”. Ao oferecer-se, não se propõe a criar um sistema de interpretação definitivo sobre determinada realidade, mas de abrir leques compreensivos sobre os aspectos que aparentemente se manifestam de maneira isolada, mas que guardam profunda inter-relação na realidade dos ambientes de trabalho. Mais do que simples compilação de múltiplos dados, portanto, a “Cartografia” é narrativa.

Ao reunir e aproveitar-se de dados já coletados anteriormente, por seus próprios profissionais (administradores, médicos, assistentes sociais, psicólogos etc.) e por diferentes ferramentas corporativas (exames médico-ocupacionais, indicadores de absenteísmo, registros diversos de desempenho, clima e ambiência organizacional, mapas de risco, dentre outras), a contribuição da “Cartografia”, enquanto método, é favorecer a transposição da contradição clássica entre a necessária exterioridade do investigador e a interioridade do sujeito, que o torna íntimo do sentido do vivido, mas o impede de tomar a distância necessária para a superação.

Para apreender o ponto de vista dos outros, é necessário partilhar a sua realidade, a sua descrição do mundo e as suas marcas simbólicas, afirmam pesquisadores como Ardoino, Boumard, Coulon e outros. Nesse sentido, a "Cartografia”, legitima-se “a partir do reconhecimento da capacidade reflexiva e interpretativa peculiar a todo ator social "(5), especialmente através de sua própria expressão, seja ela oral, escrita, gestual etc.

A “Cartografia” não pretende, é bom destacar, determinar relações de causalidade entre manifestações e situações ou eventos, mas examinar criticamente o revelador entrecruzamento ou os entrelaçamentos entre as diferentes experiências da história singular e coletiva de sujeitos, num determinado contexto. Podemos admitir tratar-se de uma cartografia fractal, na medida em que reconhece os ambientes de trabalho como sistemas complexos, nos quais se manifestam inter-relações não lineares, de múltiplas determinações, tais como a história de vida dos sujeitos, as diversas demandas psicológicas, a organização do trabalho, o contexto social e cultural, as condições de realização das tarefas e muitas outras. São elementos que "se reclamam, têm saudade um do outro"(6). Busca-se o efeito da intersubjetividade, ancorada na comunicação, na inteligência coletiva, nas relações de poder, na convivência compulsória, nas atividades prescritas e reais etc.

A cientificidade do método cartográfico de estudo dos estressores se baseia, assim, na fertilização cruzada proporcionada pela identificação dos pontos de tangenciamento e textualidade das diversas entradas de dados e referências obtidos em diferentes movimentos e fontes. Não é um simples método de registro de indicadores. Trata-se, fundamentalmente, de um esforço na direção de sua capacidade explicativa global, em que contribuições diversas desvelam-se umas às outras, complementando a re-colocação da realidade vivida.

Nessa espécie de "tecelagem etnográfica" (7) busca-se um desenho sem retoques de um todo vivido, mas nem sempre visível para seus sujeitos. Não se busca uma síntese, tampouco alguma espécie de sincretismo, mas a expressividade proporcionada pelas inter-relações.

Para tanto, as fronteiras entre as disciplinas são flexibilizadas, oferecendo-as às mediações necessárias ao cartografar. É com o apoio de bases ergológicas, psicanalíticas, sociológicas, antropológicas, psicológicas e outras que se torna possível a pretensão de mapear. O objetivo, assim, não é dizer às organizações e instituições aquilo que elas ocultam, mas aquilo que presentificam na vida laboral.

Ao mesmo tempo, não se objetiva ver mais e melhor do que vêem os sujeitos da pesquisa. Trata-se de aliar-se à fruição de múltiplas explicitações que, muitas vezes, isolam-se em si mesmas pelas diversas exigências do cotidiano, impedindo o poder explicativo de umas às outras. Aliando-as, enlaçando-as, a “Cartografia” contribui para uma experiência peculiar, de re-descoberta do já sabido a favor de muitas superações desejadas.

Ao nos referirmos a “superações desejadas” aqui, partimos do pressuposto genérico de que a ninguém interessa a presença de ameaças à saúde, ao bem estar e à qualidade de vida no trabalho.

Um dos maiores desafios na aplicação desse método é a falta de uniformidade na forma de apresentação de dados pré-existentes, coletados com propósitos diversos. Ao buscar reuni-los e fazê-los dialogar, deparamo-nos com indicadores expressos por critérios e em formatos diferentes, cuja interlocução nem sempre é fácil. Há um esforço e um tempo necessários ao ajustamento preliminar das informações, considerando, entretanto, que a realidade também é dinâmica e a apresentação dos dados não pode ter maior importância que a fidelidade com aquilo que expressam.

Estudos iniciais vêm mostrando que a “Cartografia” tende a ser mais eficiente quando aplicada em série histórica. Dizendo de outra forma, a partir do segundo ou terceiro episódios de aplicação, os resultados da “Cartografia” tendem a ser mais generativos do que quando aplicada pela primeira vez.

A relação entre os diferentes indicadores entrecruzados no método cartográfico e o estresse no trabalho vem sendo alvo de inúmeros estudos internacionais, nos quais o presente trabalho se apóia. Para aqueles interessados em maior aprofundamento no assunto, sugerimos a leitura de “Handbook of Work Stress”, editado por Julian Barling, Kevin Kelloway e Michael Frone em 2005, pela Sage Publications. No volume, os diversos autores discutem dados de pesquisas científicas de respeitadas universidades, oferecendo um quadro bastante completo do estado da arte.

(1) GARFINKEL, H. The perception of the Other: A study in social order. Harvard: Harvard University, 1952.
(2) A origem da “Taxonomia dos Estressores” está apresentada no artigo “Diferentes Estressores: diferentes formas de controle”, vencedor do Prêmio Paul Horsch, na categoria melhor trabalho acadêmico e profissional de 2004, no Congresso Internacional de Stress da International Stress Management Association (www.ismabrasil.com.br).
(3) HULLEY, S. Et al. Delineando a pesquisa clínica : uma abordagem epidemiológica. Porto Alegre: ArtMed, 2003.
(4) HALL, E. A dimensão oculta. São Paulo: Martins Fontes, 2005
(5) OGIEN, A. Le raisonnement psychiatrique. Paris: Mèridiens, 1989.
(6) MILANO, A. El archipiélago. Figuras del outro Occidente. Buenos Aires: Eudeba, 1999.
(7) COULON, A. Etnometodologia e Educação. Petrópolis: Vozes, 1995.

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