terça-feira, 5 de junho de 2007

Você está preparado para a terceira geração da qualidade?



Dra. Hilda Alevato
Colaboradora do Comitê Brasileiro da Qualidade
Psicanalista e Dra. em Educação
nest@latec.uff.br

Há muitos séculos usamos a palavra qualidade e certamente a maioria das pessoas sabe o que significa, apesar da complexidade do conceito. Recentemente, porém, dentro do sistema socioeconômico do qual fazemos parte, o termo qualidade ganhou centralidade e uma conotação toda especial.
Num cenário transnacionalizado e interdependente, altamente competitivo, a diversidade de produtos e serviços gerados por diferentes países, regiões e empresas representa cada vez maior desafio. Considerando que o jogo entre a oferta e o consumo envolve aspectos de caráter técnico e também de caráter cultural, como hábitos, necessidades, interesses, o critério de avaliação de tais produtos e serviços adotado para um grupo social pode não ser adequado para outro.
Podemos dizer, de uma maneira muito simplificada, que foi exatamente a necessidade de aproximar os padrões de produção que gerou os primeiros esforços de criação e implantação de normas industriais a nível internacional, há quase cem anos.
Na direção de um esforço maior de cooperação, em 1947, foi criada a International Organization for Standardization, a conhecida ISO, que reúne atualmente quase 150 países. Desde seu contexto de emergência, a ISO vem consolidando-se não apenas como um respeitado fórum internacional de normas e padrões, mas como um verdadeiro "network", agregador de institutos de finalidades afins, espalhados pelo planeta.
Muita coisa vem mudando, porém, desde 1906. A produção tem se sofisticado e também o mercado. Aos poucos, a sociedade vai percebendo que não basta apenas atender a requisitos básicos, ainda que substantivos: as mudanças tecnológicas e as atitudes dos consumidores passam a exigir das indústrias, empresas e organizações também uma adjetivação, trazendo para a cena a discussão sobre a qualidade do que se produz. Aos poucos, qualidade passa a ser também um diferencial, num cenário de extrema competição.
Assim, sem distanciar-se da perspectiva inicial, as entidades reunidas na ISO, na década de 80, lançam-se em direção à idéia da "qualidade". As Normas ISO passam a tratar de qualidade, ampliando cada vez mais sua abrangência e caminhando em direção a novos vôos.
Podemos dizer que essa representa a primeira geração da qualidade. A questão do mercado consumidor começa a se mostrar mais complexa do que se supunha. Nas empresas, a transformação da lógica das antigas linhas de produção, com a emergência das células, da terceirização de muitas atividades, do chamado turn key, além da associação em colmeias, com algumas delas produzindo itens e outras montando os produtos, por exemplo, vai estabelecendo uma outra concepção de cliente, que começa a ser identificado em muitos segmentos, inclusive paralelos, e não apenas no consumidor final.
Aos poucos, o mundo empresarial começa a se dar conta que a falha ou a precariedade de uma empresa parceira pode representar uma série de aborrecimentos, inclusive porque a revolução da informação torna próximos, grupos instalados em diferentes partes do planeta. Fatores tão diversos quanto as diferenças climáticas, o custo de mão de obra ou a carga tributária podem transformar a opção de produzir num grande quebra-cabeças envolvendo pontos espalhados por vários continentes.
Uma enxurrada de conceitos novos atinge o mundo da produção. É quase uma obrigação mostrar-se atualizado, sintonizado. Ainda que muitos jamais tenham tido contato direto com as idéias e as obras de Deming, seu nome passa a ser citação obrigatória em todos os congressos de Administração. Os japoneses parecem ter encontrado o caminho do sucesso. Reengenharia, just in time, qualidade total.
As várias organizações que se dedicam à criação e difusão de normas tornam-se cada vez mais procuradas. Muitas pequenas empresas nascem para assessorar quem busca alguma prestigiada Certificação. Criam-se cursos para formar auditores, criam-se prêmios, provas, congressos, seminários, publicações; cria-se uma nova indústria, enfim, em torno dos Certificados de Qualidade. Os antigos modelos não dão conta de tantas transformações e as Normas ISO ganham status de selo de confiança, mantendo-se como uma espécie de referência para aplacar a insegurança de um mundo fragilizado por tantas e tão diversas conquistas.
Na década de 90, a organização do trabalho sofre o abalo da mudança dos antigos padrões e o desemprego desvela a precariedade dos acordos e garantias trabalhistas, em especial nos países chamados "emergentes". Avolumam-se os problemas originados pelo sofrimento psíquico, como depressões e outros males, criando uma classe de riscos diferentes dos discutidos nos manuais de Saúde e Segurança no Trabalho. No mundo todo, crescem assustadoramente os índices de suicídio na chamada idade produtiva.
Esse importante contexto incrementa a ampliação das discussões da qualidade, empurrando para o primeiro plano do conjunto dos esforços de normatização as questões relativas à gestão. É tempo, portanto, de difusão das Normas de Gestão, que culminam na integração da chamada família ISO, a partir da constatação que os processos certificados não se constituíam em fatias isoladas das organizações, mas sim em elementos de um todo que não poderia suportar a sobrecarga de exigências e a sobreposição de processos altamente burocratizados.
Esse momento marca o que eu chamo de segunda geração da qualidade, cujo traço mais característico é um importante conflito. Interessados nos Certificados de Qualidade, agora passaportes exigidos para negociações e exportações, verdadeiras grifes para campanhas de marketing, muitos passaram a buscar a certificação, esquecendo-se da qualidade. A valorização de tais Certificados acabou transformando-os muitas vezes em verdadeiras camisas de força, engessando os processos de gestão, num mundo em movimento alucinado.
A filosofia da qualidade, ou seja, a qualificação do produto ou do serviço, o aprimoramento dos processos de produção, e agora também de gestão dessa produção, fica em segundo plano na intenção de registrar, documentar, atender exigências burocráticas, cumprir roteiros e imitar modelos bem sucedidos em outras organizações. Essa importantíssima questão, capaz de gerar resultados fatais para algumas empresas -certificadas, mas fracassadas - levantou uma série de dúvidas, abrindo novas discussões em diferentes fóruns da ISO.
O que seria uma Certificação se separasse a qualidade do processo dos resultados empresariais? Que tipo de qualidade estaria sendo alimentada, se a preocupação mais central se limitava ao cumprimento de exigências externas e sem ressonância no cotidiano? Qual seria então a finalidade desse esforço, se não fosse possível garantir o resultado esperado mesmo tornando o processo mais rígido e exigente?
Nesse mesmo momento, conumidores organizados despertam e surge a atualíssima noção de Direitos do Consumidor. Para muitos, consumidor ainda se reduz ao pagante. Não são raras as vezes em que se argumenta pela exigência de qualidade, baseada exclusivamente numa relação de consumo tipificada pelo pagamento direto.
Enfim, as discussões envolvendo a qualidade passam bem nas entranhas do próprio sistema, encaminhando para o que estou chamando de terceira geração da qualidade, ou seja, o momento em que vemos a emergência de forças conflituadas ou agregadas em torno de temas como responsabilidade social, meio ambiente, ecologia e outros.
É importante destacar que vivemos, nesse momento ainda embrionário, cenas que confirmam o grande risco de ver burocratizados e transformados em simples "mercadorias", os slogans sociais típicos do momento. Para muitos daqueles que se estabeleceram profissionalmente em torno das certificações (consultores, auditores, instrutores e outros), ao mesmo tempo em que surge um novo "produto" para o mercado das normas - a Responsabilidade Social - surge o desafio de não deixar-se envolver pela fácil banalização dos conceitos. Torná-los descartáveis, aos conceitos de cunho social, ameaça a todos.
Da mesma maneira que a filosofia da qualidade se viu sufocada pela Certificação, a Responsabilidade Social pode se ver limitada a ações de caráter mercantilista e teatral. O sentido da luta pela responsabilidade social precisa enfrentar desafios que vão desde consciências famintas por privilégios e riquezas fáceis até modelos fatiados de gestão.
Dentre outras coisas, destaca-se nesse terceiro momento a qualidade da gestão (gestão de qualidade, e não da qualidade) como um grande esforço de integração que passa por muitos níveis. Pensar nisso obriga criar uma gestão que considere a quantidade de descartáveis atirada ao lixo, ainda que tais descartáveis estejam embalando um produto de qualidade. Passa também por considerar que os indicadores de acidentes de trabalho e adoecimento dos funcionários não podem ser ignorados quando se avalia uma Gestão.
Assim, em síntese, podemos dizer que a primeira geração da qualidade se caracteriza pela preocupação com o mercado e o cliente. Conquistar novos mercados, diferenciar seu produto, são preocupações dessa fase, quando as normas internacionais começam a discutir mais do que os aspectos técnicos da indústria, inserindo outras esferas do sistema produtivo nos esforços pela padronização.
A revolução tecnológica, a transnacionalização da economia e a crise do mundo do emprego trazem a característica básica da segunda geração da qualidade: as Normas de Gestão, a integração da família ISO, o conflito entre buscar a Certificação e buscar a Qualidade.
A terceira geração da qualidade se caracteriza pela superação da idéia de integração de caráter apenas endógeno, levando o olhar para a interdependência da vida humana, ameaçada pela destruição do planeta, pelo descompromisso com as questões sociais, pela dimensão predatória do modelo capitalista. A terceira geração apela para um esforço de participação, de inclusão social, de ética. Não se trata mais de integrar normas de gestão internamente, mas de incluir-se na "gestão" do planeta, da qualidade social da vida, responsabilizar-se, enfim.

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