terça-feira, 26 de junho de 2007

Nem sapos



Nem galinhas, nem porcos...



Dra. Hilda Alevato
Psicanalista, Dra. em Educação
Coordenadora do NEST/LATEC/UFF
Núcleo de Educação e Saúde no Trabalho
nest@latec.uff.br



Muitas vezes ouvimos estórias contadas no mundo corporativo, algumas inclusive publicadas, cujo objetivo é ilustrar vivências, sugerir caminhos, corrigir rumos. De maneira metafórica, claro, mas essas estórias circulam em quase todas as rodas, gerando um certo consenso sobre suas indicações.

Um exemplo do que estou dizendo é uma recente estória, envolvendo uma galinha que oferece seu ovo para o café da manhã e um porco, que dá o bacon. Ou seja, a galinha dá apenas parte do que produz, enquanto o porco dá a si mesmo. Sei que muitos já a identificaram.

Sei também que muitos estão pensando: “— Essa estória é velha! Tem bem mais de um ano! Não é recente!”

Se você é um desses, não se assuste, apenas pense... Num mundo de transformações tão enlouquecidas, recente hoje é apenas o que acabou de ser noticiado. O que saiu pela manhã já está ficando superado. Se é notícia de ontem, então, já não tem nenhum valor... Até o jornal de domingo tem que sair no sábado, para não perder a atualidade! Será que é mesmo um jornal de domingo ou é apenas um jornal com um proposital erro de impressão?

Bem... essa nossa experiência com o tempo é bastante assustadora... Outro dia ouvi de um aluno que não era possível que alguém tivesse interesse em ler autores de séculos passados porque seriam totalmente desatualizados. Ele se referia aos filósofos e aos clássicos que constavam da bibliografia da disciplina... Certamente se sentia contemplado e esgotado pelas milhares de estorinhas à disposição nos e-mails diários.

Mas, outra faceta dessa experiência de abundância de informação, instantaneidade e simultaneidade que vivemos hoje é a ilusão das certezas. Contraditoriamente, num mundo de tantas supresas e inovações, acabamos por considerar definitivos alguns conceitos que as tais estorinhas se dedicam a explorar. É o caso das nossas galinhas e de nossos porcos, sempre lembrados quando eu falo em envolvimento ou em comprometimento.

Usando a tal estória como argumento, parece bastante simples discordar quando eu afirmo que não estamos em tempo de comprometimento com as empresas. Se o criador da estória disse que era preciso comprometer-se como o porco, então, por que a Hilda insiste em falar em envolvimento?

Tenho escrito uma série de pequenos artigos sobre isso. Visitanto a história e a economia é possível compreender que nossas atitudes em relação às empresas não podem obedecer ao paradigma do comprometimento, do “vestir a camisa”, próprio do momento em que a filiação ocupacional era a garantia do desenvolvimento de uma carreira, era a segurança para sobreviver até o fim dos dias.

Pensemos em nossos pais e avós. Na lógica de algumas décadas atrás, o homem era educado para encontrar um bom patrão, fidelizar-se e servi-lo durante toda sua trajetória profissional. Sendo um “bom empregado” – respeitanto horários, não faltando, cumprindo as ordens – seu emprego estaria garantido e o salário pago ao final do mês. A demissão era geralmente um castigo, uma vergonha, e estava reservada para aqueles que não cumprissem o seu dever. Era relativamente simples. Em síntese, para manter o emprego, bastava isso: obedecer às ordens do chefe.

Tenho um vizinho que me disse ter trabalhado durante 42 anos na mesma sala, na mesma mesa! Funcionário de uma empresa de arquivamento, sua tarefa foi sempre a mesma: registrar nos livros tudo que entrasse e saísse de seu setor. Tinha total controle desses volumes, cuidadosamente encapados e enfileirados numa estante ao lado da mesa... Começou ainda adolescente, através do convite de seu antigo patrão, um vizinho que ajudou sua família quando o pai morreu.

Flexibilidade? Empregabilidade? Responsabilidade social? Respeito ao meio ambiente? Não eram temas que freqüentassem seu dia-a-dia. Ia e vinha, à mesma hora. Não fez nenhum curso, mas considerava-se um expert em sua função, pela grande experiência acumulada.

Para ele, comprometimento era fidelidade, era dedicação. Era seu dever a obediência àquele que também cumpria sua parte no acordo de cavalheiros. Em troca da segurança que lhe era garantida, oferecia-se àquilo que era sua obrigação, sem questionar muito. Mandado, obedecia. Orgulhava-se de ser reconhecido no condomínio como funcionário da empresa X. A defesa de seu nome era uma questão de honra. Felizmente sua aposentadoria veio antes da transformação da empresa numa prestadora de serviços digitais...

Quando afirmo que atualmente o apelo ao comprometimento com a empresa é falacioso, não me refiro a um jogo de “tudo ou nada”. Não defendo o descaso, a negligência ou a indiferença ao que se passa ao seu redor. Para as empresas, é fundamental esperar de um empregado o envolvimento com seu trabalho, com suas responsabilidades, com as conseqüências de seu agir.

Envolvimento é um conceito que está ligado à motivação. Baseia-se num tripé – coerência, pessoalidade e antecipação – a partir do qual é possível elaborar um programa de gestão que favoreça o envolvimento dos profissionais com os projetos e atividades laborais.

Comprometimento é entrega, é fidelidade, é obediência. Não estou dizendo que não se deva pensar em nenhum comprometimento hoje. Mas, o comprometimento num mundo que se descobre deteriorável, revolucionado e em movimento acelerado precisa ser alimentado em relação a princípios e valores: valores humanos, morais, sociais.

Para as melhores empresas, ter um empregado comprometido com valores é ter a garantia da ação ética, da responsabilidade social, da preocupação com o ambiente, com a vida. Uma pessoa que se compromete radicalmente dessa forma, age profissionalmente com seriedade, com honestidade, e não se submete ao jogo do vale tudo para manter seu cargo, sua função, seu lugar.

Ainda há muito do discurso de “vestir a camisa” em nossas empresas. Especialmente nos momentos de crise, de mudanças e rearranjos corporativos esse discurso aparece, quase como uma capa de dedicação que passe ao largo das circunstâncias e condições de trabalho.

É preciso, porém, esquecer o apelo ao “vestir a camisa”. Nossa consciência política mostra que para além dos interesses particulares ou corporativistas, há que se lutar por valores maiores. Não há como vestir a camisa se a empresa polui, abusa do consumidor, explora o trabalho infantil, independentemente do quanto de benefícios possa oferecer a seus empregados ou a seus acionistas.

Num mundo em que a luta pela cidadania ganha tanta relevância, precisamos construir uma nova relação profissional, com comprometimentos de ambas as partes. Mas não uma com a outra, não uma troca de deveres ou favores entre patrões e empregados. Precisamos, sim, nos comprometer com uma sociedade mais digna para todos.


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