quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Mortes na Construção Civil

 Fonte: http://www.protecao.com.br/site/content/noticias/noticia_detalhe.php?id=J9yAJjjb&utm_campaign=Prote%25E7%25E3o%2BNewsletter%2BEd.%2B32%252F11&utm_medium=email&utm_source=clients
 
  

 
 Cresce o número de acidentes com morte na construção civil
 


Data: 10/08/2011 / Fonte: Bom Dia Brasil

Uma pergunta circula pelos canteiros de obra de todo o Brasil: falta segurança ou sobra displicência? O número de acidentes com morte na construção civil é muito grande. São centenas de mortos todos os anos. A construção civil cresceu muito, e o número de obras aumentou bastante. Pelos canteiros, o que mais se vê é o descuido com a segurança.

Em Sorocaba, no interior de São Paulo, é um barulhão que qualquer um ouve de longe. O recomendável para o ouvido humano é até 85 decibéis. A britadeira atinge 110 decibéis.
"Tenho medo de ficar surdo. Ele foi buscar para mim lá em cima. Se parar o trabalho, vai atrasar um pouco mais o serviço", conta um operário. O operador do equipamento usa protetor nos ouvidos, mas não nos olhos. "Isso aqui é uma coisa rápida", diz outro operário.
Essa falta de cuidado com a vida vai refletir diretamente nas estatísticas. As mortes no setor da construção civil têm aumentado bastante. Trabalhar em grande altura sem nenhum equipamento de segurança obrigatório, como capacete, luvas e cinto, é se expor demais ao perigo. Segundo o Ministério do Trabalho, 376 pessoas morreram no ano passado em acidentes na construção civil.
Em Salvador, na Bahia, a polícia investiga o que provocou a queda de um elevador em um prédio em construção. Nove operários morreram. Eles despencaram de uma altura de 80 metros. A construção foi embargada por tempo indeterminado pelo Ministério do Trabalho. Só será reaberta quando a empresa cumprir as exigências dos técnicos para dar mais segurança aos trabalhadores.
Em Parnamirim, região metropolitana de Natal (RN), Lenilson da Silva, 21, morreu depois de cair de um prédio. Ele tentava passar do elevador para o bloco ao lado quando despencou do nono andar. Em São Luís, no Maranhão, os cabos de aço do elevador de uma obra se romperam na semana passada. Um trabalhador morreu e seis ficaram feridos.
Em Sorocaba, interior de São Paulo, dois homens morreram soterrados quando abriam uma vala. Um dos problemas é que cresce a quantidade de novos empreendimentos, mas a fiscalização não acompanha o mesmo ritmo.
"O número de fiscais por canteiro de obras ou por empresas é muito pequeno em relação ao que era há 15 ou 20 anos atrás", diz o auditor do Ministério da Fazenda, Antonio do Nascimento.
Além de ter poucos fiscais, falta a conscientização de patrões e empregados. Em uma construção, o encarregado só se lembrou de distribuir os capacetes quando percebeu que os trabalhadores estavam sendo filmados.
"A parte da empresa não é só fornecer o equipamento de segurança. A empresa precisa fornecer o equipamento de segurança e também ter um profissional para treinar esse pessoal do uso correto desse equipamento de segurança. A partir do momento que ela cumprir com a parte dela, eu tenho certeza de que os acidentes diminuirão muito", diz João Donizetti Martins, do Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Sorocaba.
O Ministério do Trabalho informou que tem três mil fiscais em todo o Brasil e que não há previsão para um novo concurso este ano.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Estresse e gravidez

Estudo indica que estresse da mãe afeta bebê no útero

Por: Michelle Roberts,
Repórter de saúde, BBC News, Estocolmo
Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/07/110719_estresse_mae_feto_mv.shtml?print=1

Alterações biológicas em receptor de hormônios podem prejudicar a criança no futuro

O estresse de uma mãe pode afetar seu bebê ainda no útero, produzindo efeitos a longo prazo na vida da criança, sugerem pesquisadores alemães.
A equipe da Universidade de Kontanz, na Alemanha, observou que houve alterações biológicas em um receptor de hormônios associados ao estresse em fetos cujas mães estavam sob tensão intensa - por exemplo, por conviverem com um parceiro violento.
As alterações sofridas pelo feto podem fazer com que a própria criança seja menos capaz de lidar com o estresse mais tarde. Essas alterações foram associadas, por exemplo, a problemas de comportamento e doenças mentais.
As conclusões, baseadas em um estudo limitado feito com apenas 25 mulheres e seus filhos - hoje com idades entre 10 e 19 anos -, foram publicadas na revista científica Translational Psychiatry.
Os pesquisadores fazem algumas ressalvas: eles explicam que as circunstâncias das mulheres que participaram desse estudo eram excepcionais, e que a maioria das mulheres grávidas não seria exposta a graus tão altos de estresse durante um período tão longo.
A equipe enfatiza também que os resultados não são conclusivos, e que muitos outros fatores, entre eles o ambiente social em que a criança cresceu, podem ter desempenhado um papel nos resultados.
Mas os especialistas alemães suspeitam que o ambiente primordial, ou seja, o do útero, tenha papel crucial.
Investigação
O estudo envolveu análises dos genes das mães e dos filhos adolescentes para a identificação de padrões pouco comuns.
Alguns dos adolescentes apresentaram alterações em um gene em particular - o receptor de glucocorticoide (GR) - responsável por regular a resposta hormonal do organismo ao estresse.
Esse tipo de alteração genética tende a acontecer quando o bebê está se desenvolvendo, ainda no útero.
A equipe disse acreditar que ela seja provocada pelo estado emocional ruim da mãe durante a gravidez.
Sensibilidade
Durante a gravidez, as mães participantes viveram sob ameaça constante de violência por parte de seus maridos ou parceiros.
Entre dez ou vinte anos mais tarde, quando os bebês, já adolescentes, foram avaliados, os especialistas constataram que eles apresentavam alterações genéticas no receptor GR não observadas em outros adolescentes.
A alteração identificada parece tornar o indivíduo mais sensível ao estresse, fazendo com que ele reaja à emoção mais rapidamente, dos pontos de vista mental e hormonal.
Essas pessoas tendem a ser mais impulsivas e podem ter problemas para lidar com suas emoções, explicam os pesquisadores - que fizeram entrevistas detalhadas com os adolescentes.
Um dos líderes da equipe da Universidade de Kontanz, Thomas Elbert, disse: "Nos parece que bebês que recebem de suas mães sinais de que estão nascendo em um mundo perigoso respondem mais rápido (ao estresse). Eles têm um limite mais baixo de tolerância ao estresse e parecem ser mais sensíveis a ele".
A equipe planeja agora fazer estudos mais detalhados, acompanhando números maiores de mulheres e crianças para verificar se suas suspeitas serão confirmadas.
Comentando o estudo, o médico Carmine Pariante, especialista em psicologia do estresse do Instituto de Psiquiatria do King's College London, disse que o ambiente social da mãe é de extrema importância para o desenvolvimento do bebê.
Segundo ele, durante a gravidez, o bebê é sensível a esse ambiente de uma forma única, "muito mais, por exemplo, do que após o nascimento. Como temos dito, lidar com o estresse da mãe e com a depressão durante a gravidez é uma estratégia importante, clínica e socialmente".

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Roupas da Zara são fabricadas com mão de obra escrava

Fonte: http://www.reporterbrasil.org.br/exibe.php?id=1925

Em recente operação que fiscalizou oficinas subcontratadas de fabricante de roupas da Zara, 15 pessoas, incluindo uma adolescente de 14 anos, foram libertadas de trabalho escravo contemporâneo em plena capital paulista

Por Bianca Pyl* e Maurício Hashizume
São Paulo (SP) - Nem uma, nem duas. Por três vezes, equipes de fiscalização trabalhista flagraram trabalhadores estrangeiros submetidos a condições análogas à escravidão produzindo peças de roupa da badalada marca internacional Zara, do grupo espanhol Inditex.

Na mais recente operação que vasculhou subcontratadas de uma das principais "fornecedoras" da rede, 15 pessoas, incluindo uma adolescente de apenas 14 anos, foram libertadas de escravidão contemporânea de duas oficinas - uma localizada no Centro da capital paulista e outra na Zona Norte.

Para sair da oficina que também era moradia, era preciso pedir autorização (Foto: Fernanda Forato)

A investigação da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP) - que culminou na inspeção realizada no final de junho - se iniciou a partir de uma outra fiscalização realizada em Americana (SP), no interior, ainda em maio. Na ocasião, 52 trabalhadores foram encontrados em condições degradantes; parte do grupo costurava calças da Zara.

"Por se tratar de uma grande marca, que está no mundo todo, a ação se torna exemplar e educativa para todo o setor", coloca Giuliana Cassiano Orlandi, auditora fiscal que participou de todas as etapas da fiscalização. Foi a maior operação do Programa de Erradicação do Trabalho Escravo Urbano da SRTE/SP, desde que começou os trabalhos de rastreamento de cadeias produtivas a partir da criação do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo - Cadeia Produtiva das Confecções.

A ação, complementa Giuliana, serve também para mostrar a proximidade da escravidão com pessoas comuns, por meio dos hábitos de consumo. "Mesmo um produto de qualidade, comprado no shopping center, pode ter sido feito por trabalhadores vítimas de trabalho escravo".

Roupa com etiqueta da marca, falta de espaço, riscos e banho frio (Fotos: FF, BP e SRTE/SP)
O quadro encontrado pelos agentes do poder público, e acompanhado pela Repórter Brasil, incluía contratações completamente ilegais, trabalho infantil, condições degradantes, jornadas exaustivas de até 16h diárias e cerceamento de liberdade (seja pela cobrança e desconto irregular de dívidas dos salários, o truck system, seja pela proibição de deixar o local de trabalho sem prévia autorização). Apesar do clima de medo entre as vítimas, um dos trabalhadores explorados confirmou que só conseguia sair da casa com a autorização do dono da oficina, só concedida em casos urgentes, como quando levou seu filho ao médico.

Quem vê as blusas de tecidos finos e as calças da estação nas vitrines das lojas da Zara não imagina que, algumas delas, foram feitas em ambientes apertados, sem ventilação, sujos, com crianças circulando entre as máquinas de costura e a fiação elétrica toda exposta. Principalmente porque as peças custam caro. Por fora, as oficinas parecem residências, mas todas têm em comum as poucas janelas sempre fechadas e com tecidos escuros para impedir a visão do que acontece do lado de dentro das oficinas improvisadas.

As vítimas libertadas pela fiscalização foram aliciadas na Bolívia e no Peru, país de origem de apenas uma das costureiras encontradas. Em busca de melhores condições de vida, deixam os seus países em busca do "sonho brasileiro". Quando chegam aqui, geralmente têm que trabalhar inicialmente por meses, em longas jornadas, apenas para quitar os valores referentes ao custo de transporte para o Brasil. Durante a operação, auditores fiscais apreenderam dois cadernos com anotações de dívidas referentes à "passagem" e a "documentos", além de "vales" que faziam com que o empregado aumentasse ainda mais a sua dívida. Os cadernos mostram alguns dos salários recebidos pelos empregados: de R$ 274 a R$ 460, bem menos que o salário mínimo vigente no país, que é de R$ 545.

As oficinas de costura inspecionadas não respeitavam nenhuma norma referente à Saúde e Segurança do Trabalho. Além da sujeira, os trabalhadores conviviam com o perigo iminente de incêndio, que poderia tomar grandes proporções devido a quantidade de tecidos espalhados pelo chão e à ausência de janelas, além da falta de extintores de incêndio. Após um dia extenuante de trabalho, os costureiros, e seus filhos, ainda eram obrigados a tomar banho frio. Os chuveiros permaneciam desligados por conta da sobrecarga nas instalações elétricas, feitas sem nenhum cuidado, que aumentavam os riscos de incêndio.

As cadeiras nas quais os trabalhadores passavam sentados por mais de 12 horas diárias eram completamente improvisadas. Alguns colocavam espumas para torná-las mais confortáveis. As máquinas de costura não possuíam aterramento e tinham a correia toda exposta (foto acima). O descuido com o equipamento fundamental de qualquer confecção ameaçava especialmente as crianças, que circulavam pelo ambiente e poderiam ser gravemente feridas (dedos das mãos decepados ou até escalpelamento).

Para Giuliana, a superexploração dos empregados, que têm seus direitos laborais e previdenciários negados, tem o aumento das margens de lucro como motivação. "Com isso, há uma redução do preço dos produtos, caracterizando o dumping social, uma vantagem econômica indevida no contexto da competição no mercado, uma concorrência desleal".O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) lavrou 52 autos de infração contra a Zara devido as irregularidades nas duas oficinas. Um dos autos se refere à discriminação étnica de indígenas quéchua e aimará. De acordo com a análise feita pelos auditores, restou claro que o tratamento dispensado aos indígenas era bem pior que ao dirigido aos não-indígenas.
"Observa-se com nitidez a atitude empresarial de discriminação. Todos os trabalhadores brasileiros encontrados trabalhando em qualquer um dos pontos da cadeia produtiva estavam devidamente registrados em CTPS [Carteira de Trabalho e Previdência Social], com jornadas de trabalho condizentes com a lei, e garantidos em seus direitos trabalhistas e previdenciários", destaca o relatório da fiscalização. "Por outro lado, os trabalhadores imigrantes indígenas encontram-se em situação de trabalho deplorável e indigno, em absoluta informalidade, jornadas extenuantes e meio ambiente de trabalho degradante".
Dignidade é subtraída por dívidas, degradância, longas jornadas e baixa remuneração (Foto: BP)

A equipe de fiscalização foi composta por dois agentes da Polícia Federal (PF), integrantes do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas - da Secretaria da Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo, auditores da SRTE/SP e dirigente do Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco.

Blusas e vestidosA primeira oficina vistoriada mantinha seis pessoas, incluindo uma adolescente de 14 anos, em condições de trabalho escravo. No momento da fiscalização, os empregados finalizavam blusas da Coleção Primavera-Verão da Zara, na cor azul e laranja (fotos acima). Para cada peça feita, o dono da oficina recebia R$ 7. Os costureiros declararam que recebiam, em média, R$ 2 por peça costurada. No dia seguinte à ação, 27 de junho, a reportagem foi até uma loja da Zara na Zona Oeste de São Paulo (SP), e encontrou uma blusa semelhante, fabricada originalmente na Espanha, sendo vendida por R$ 139.

A oficina funcionava em um cômodo de uma casa pequena - na parte de cima de um sobrado. Seis máquinas de costura ocupavam uma pequena sala. Dois quartos abrigavam todos os trabalhadores, inclusive casais com filhos. O espaço era dividido por guarda-roupas e panos. No banheiro, não havia água banho quente, pois o chuveiro estava desligado para reduzir o consumo de energia elétrica, que era totalmente destinada à produção.

A adolescente de 14 anos tomava conta das duas crianças enquanto as mães trabalhavam. Ela ajudava também na limpeza da casa e no preparo das refeições. No Brasil desde 2010, não está estudando. Seu irmão juntou dinheiro e foi buscá-la na capital boliviana de La Paz.

A fiscalização lacrou a produção e apreendeu parte das peças, incluindo a peça piloto da marca Zara. As máquinas de costura também foram interditadas por não oferecerem segurança aos trabalhadores.
Prédio onde ficava oficina, condições degradantes, precariedades e etiquetas (Fotos: SRTE/SP, FF e BP)
Da outra oficina localizada em movimentada avenida do Centro, foram resgatadas nove pessoas que produziam uma blusa feminina e vestidos para a mesma coleção Primavera-Verão da Zara.

A intermediária AHA (que também utilizava a razão social SIG Indústria e Comérico de Roupas Ltda.) pagava cerca de R$ 7 por cada peça para a dona da oficina, que repassava R$ 2 aos trabalhadores. Peça semelhante a que estava sendo confeccionada foi encontrada em loja da marca com o preço de venda de R$ 139.

Uma jovem de 20 anos, vinda do Peru, disse à reportagem que chegou a costurar 50 vestidos em um único dia. Em condições normais, estimou com Maria Susicléia Assis, do Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco, seria preciso um tempo muito maior para que a mesma quantidade da difícil peça de vestuário fosse toda costurada.

Há 19 anos no Brasil, a boliviana que era dona da oficina teve todos os seus oito filhos (entre 5 meses e 15 anos) nasceram aqui. Ela sonha em dar um futuro melhor aos rebentos, para que não tenham que trabalhar "nas máquinas, com costura". "Todo mundo na minha terra que vinha para o Brasil dizia que aqui era bom. E eu vim", contou a senhora.

Parte da produção foi apreendida, assim como as peças pilotos, que carregavam instruções da Zara de como confeccionar a peça de acordo com o padrão definido pela varejista multinacional. "Isso demonstra a subordinação das oficinas e da AHA em relação à Zara", realça Giuliana. A oficina e um dos quartos, onde dormiam dois trabalhadores e duas crianças, foram interditados. A fiação elétrica estava totalmente exposta e havia possibilidade de curto-circuito.

Os trabalhadores declararam trabalhar das 7h30 às 20h, com uma hora de almoço, de segunda à sexta-feira. Aos sábados, o trabalho seguia até às 13h. Um trabalhador chegou a relatar que há dias em que o trabalho se estende até às 22h.

O local funciona em um sobrado de dois andares (foto ao lado), com muitos cômodos. O maior deles, onde os trabalhadores passavam a maior parte do dia, acomodava as máquinas. Os cinco banheiros estavam muito sujos. Somente três possuíam chuveiros, mas todos também estavam desligados.

Um dos trabalhadores, irmão da dona da oficina, está no Brasil há sete anos e já possui os documentos e até CTPS. "Eu trabalho na costura desde que cheguei. Mas eu queria mesmo era trabalhar com música. Eu consegui comprar algum equipamento já".

Outro jovem, de 21 anos, disse que não gosta muito do trabalho porque é "cansativo". Ele recebe, em média, R$ 500 por mês. "Eu vou voltar para a Bolívia. Queria estudar Turismo e trabalhar com isso. A costura é só para sobreviver", projetou.

A Zara foi avisada do flagrante no momento da ação pelos auditores fiscais e convidada a ir até a oficina de costura, mas não compareceu.

No dia seguinte, compareceram à sede da SRTE/SP dois diretores, que não quiseram participar da reunião de exposição dos fatos,. Até o advogado da empresa foi embora sem ver as fotos da situação encontrada. Somente duas advogadas da AHA (que no início da reunião se apresentaram como enviadas dos donos das oficinas e até dos trabalhadores) participaram da reunião com os auditores. A empresa não providenciou sequer alimentação às vítimas, que ficou a cargo do sindicato da categoria.

FluxogramaA intermediária na contratação das duas oficinas em que houve libertações é a AHA Indústria e Comércio de Roupas Ltda. No período de abril a junho deste ano, a produção de peças para a Zara chegou a 91% do total. A SRTE/SP descobriu que há 33 oficinas sem constituição formal, com empregados sem registros e sem recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) contratadas pela AHA para a executar a atividade de costura.
Por meio de análises de documentos da empresa AHA, incluindo contábeis, a fiscalização verificou que, neste mesmo período, mais de 46 mil peças foram produzidas para a Zara sem nenhuma formalização.

Durante o período auditado pela fiscalização (julho de 2010 a maio deste ano), a AHA foi a fabricante da Zara que mais cresceu em faturamento e número de peças de roupas faturadas para a marca, a ponto, na descrição da SRTE/SP, de se tornar a maior fornecedora da Zara na área de tecidos planos. Entretanto, chamou a atenção dos agentes que, nesse mesmo período, a empresa diminuiu o número de empregados formalizados. Os contratados diretamente da AHA passaram de 100 funcionários para apenas 20 (gráfico abaixo). A redução do  de trabalhadores na função de costureiros foi ainda mais drástica: dos anteriores 30 para cinco funcionários exercendo a função.

"O nível de dependência econômica deste fornecedor para com a Zara ficou claro para a fiscalização. A empresa funciona, na prática, como extensão de logística de sua cliente preponderante, Zara Brasil Ltda.", sustentam os auditores fiscais do trabalho que estiveram à frente da investigação.

Foi apurado que até a escolha dos tecidos era feita pelo Departamento de Produtos da Zara. Mas o fabricante terceirizado encaminhava peças piloto por conta própria para a matriz da Zara (Inditex) na Espanha, após a aprovação de um piloto pela gerente da Zara Brasil. Somente após a anuência final da Europa, o pedido oficial era emitido para o recebimento das etiquetas. Na opinião de Luís Alexandre Faria, auditor fiscal que comandou as investigações, a empresa faz de tudo, porém, para não "aparecer" no processo.
Para a fiscalização trabalhista, não pairam dúvidas acerca do gerenciamento da produção por parte da Zara. Entre os atos típicos de poder diretivo, os agentes ressaltaram "ordens verbais, fiscalização, controle, e-mails solicitando correção e adequação das peças, controle de qualidade, reuniões de desenvolvimento, cobrança de prazos de entrega etc."

Os 52 autos de infração foram lavrados em nome da Zara. "A empresa tem responsabilidade por quem trabalha para ela. Esses trabalhadores estavam produzindo peças da Zara, e seguindo determinações da empresa", coloca Giuliana. É a chamada responsabilização estrutural, completa Luís. "Essa é a atividade fim da empresa, a razão de sua existência. Portanto, é dever dela saber como suas peças estão sendo produzidas".

A confecção de uma calça gerava ao dono da oficina terceirizada R$ 6, em média. Este valor era dividido em três partes: R$ 2 para os trabalhadores; R$ 2 para as despesas com alimentação, moradia e outros custos; e R$ 2 para o dono da oficina. Após a produção na oficina, a intermediária (AHA) recolhia a produção e encaminhava as peças à lavanderia, também terceirizada. Depois, o produto ainda era acabado e embalado para ser entregue à Zara.

Após os flagrantes, os trabalhadores compareceram à SRTE/SP, onde foram colhidos depoimentos e emitidas as carteiras e as guias de Seguro Desemprego para Trabalhador Resgatado. Parte das vítimas já havia dado entrada na documentação obter o visto de permanência no Brasil.

As verbas rescisórias, que acabaram sendo pagas pela intermediária AHA, totalizaram mais de R$ 140 mil. As contribuições previdenciárias sonegadas e pagas a posteriori somaram cerca de R$ 7,2 mil. Já as contribuições sociais e ao FGTS sonegadas chegaram à R$ 16,3 mil.

Primeiro flagrante de trabalho escravo na cadeia produtiva da Zara foi em Americana (Fotos: BP)
A Repórter Brasil entrou em contato com a AHA, que preferiu não responder especificamente ao conjunto de perguntas enviadas. A advogada da fornecedora da Zara enviou apenas uma nota escrita em que declarou que a empresa "jamais teve conhecimento da utilização, pelas oficinas contratadas, de mão de obra escrava; jamais teve qualquer participação na contratação dos funcionários de referidas oficinas; e, assim que tomou conhecimento de irregularidades constatadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, imediatamente adotou todas as providências necessárias à regularização".

A intermediária alega ainda em seu comunicado que "prestou serviços não só à Zara, como a outras empresas" e "que repudia toda e qualquer utilização, por quem quer que seja", de trabalho análogo à escravidão.

CalçasO primeiro flagrante de oficina em condições degradantes com pessoas costurando peças para a Zara se deu em Americana (SP), interior de São Paulo, no final de maio. Motivada pela denúncia de um trabalhador, a ação foi realizada pela Gerência Regional do Trabalho e Emprego (GRTE) de Campinas (SP), pela Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região (PRT-15) e pela Polícia Federal (PF). A Vigilância Sanitária de Americana foi chamada a atuar e interditou os alojamentos. Os empregados não foram retirados por causa da inexistência de abrigos para este fim no município.

Foram encontrados 52 trabalhadores, sendo cinco deles brasileiros. O restante do grupo era formado por bolivianos. Na oficina de Narciso Atahuichy Choque, os empregados eram submetidos à jornada exaustiva e expostos a riscos. Além disso, muitos trabalhadores foram aliciados na Bolívia e chegaram ao Brasil devendo o valor da passagem.

O alojamento e o local de trabalho estavam em condições degradantes e insalubres. Havia risco de incêndio devido à sobrecarga nas precárias instalações elétricas. Poderia haver explosão, por causa dos botijões de gás de cozinha encontrados irregularmente nos quartos.

A oficina funcionava em um imenso galpão de dois andares. No andar superior, ficavam os alojamentos e a cozinha. No inferior, as máquinas. A fiação elétrica estava exposta e o local era muito sujo. Havia um bebedouro, porém somente um copo plástico para todos dividirem. Os pequenos quartos abrigavam famílias inteiras e grupos de até cinco trabalhadores. Alguns cômodos tinham alimentos espalhados, armazenados de forma inadequada.

Um grupo de trabalhadores costurava uma calça jeans da Coleção Primavera-Verão da Zara. Cada trabalhador fazia uma parte da peça e o valor de, em média, R$ 1,80, era dividido pelo grupo todo, composto por sete pessoas. O dono da oficina afirmou que trabalha há cinco anos com a intermediária Rhodes e que aproximadamente 70% da sua produção é destinada à empresa. A oficina é especializada em calças e bermudas. Uma funcionária da Rhodes costuma visitar e verificar as condições e o ritmo de produção da oficina.

Após a fiscalização, a Rhodes pagou as verbas rescisórias de cada trabalhador. A fiscalização foi à nova oficina de Narciso, em 26 de junho, e constatou melhorias. Entre elas, o registro de todos os funcionários, regularização migratória, submissão de costureiros a exames médicos.
Mistura entre espaço familiar e de trabalho, instruções e peça piloto (Fotos: SRTE/SP, FF e BP)
De acordo com auditores fiscais da GRTE de Campinas (SP), houve adequação da instalação elétrica e melhora do espaçamento entre as máquinas. Os trabalhadores agora utilizam cadeiras com melhores condições ergonômicas e de conforto. A iluminação também foi melhorada e os equipamentos de incêndio estão todos válidos e sinalizados. As saídas de emergência foram demarcadas. "Com a mudança da oficina e a suspensão da interdição, grande parte dos trabalhadores voltaram a trabalhar de forma regular nas novas instalações da mesma oficina", discorre a auditora Márcia Marques. Foram lavrados 30 autos de infração contra a intermediária Rhodes pelas irregularidades encontradas. Nove autos se referem às questões trabalhistas e as demais infrações estão relacionadas à saúde e segurança do trabalho. A reportagem não conseguiu entrar em contato com a Rhodes pelos telefones da empresa.

Made in BrazilEm resposta a questões sobre os ocorridos enviadas pela Repórter Brasil, a Inditex - que é dona da Zara e de outras marcas de roupa com milhares de lojas espalhadas mundo afora - classificou o caso envolvendo a AHA e as oficinas subcontratadas como "terceirização não autorizada" que "violou seriamente" o Código de Conduta para Fabricantes.

Seungod a Inditex, o Código de Conduta determina que qualquer subcontratação deve ser autorizada por escrito pela Inditex. A assinatura do Código do Conduta é obrigatória para todos os fornecedores da companhia e foi assumido pelo fornecedor em questão (AHA/SIG).

A empresa disse ter agido para que o fornecedor responsável pela "terceirização não autorizada" pudesse "solucionar" a situação imediatamente, assumindo as compensações econômicas dos trabalhadores e comprometendo-se a corrigir as condições de trabalho da oficina flagrada com escravidão.

Haverá, segundo a Inditex, um reforço an revisão do sistema de produção da AHA, assim como das outras empresas no Brasil, para garantir que não exista outro caso como este. "Estamos trabalhando junto com o MTE para a erradicação total destas práticas que violam não só nosso rígido Código de Conduta, como também a legislação trabalhista brasileira e internacional".

Em 2010, a Inditex produziu mais de 7 milhões de unidades de peças no Brasil, desenvolvidas, segundo a empresa, por cerca de 50 fornecedores que somam "mais de 7 mil trabalhadores". O total de peças que estava sendo produzido irregularmente (algumas centenas de peças), adicionou a Inditex, representa "uma porcentagem inferior a 0,03%" da produção do grupo, que é um dos maiores do mundo no segmento, no país.

A maior parte dos produtos do grupo que comanda a Zara é feita na Europa. Metade é confeccionada em países como Espanha (onde a empresa mantém fábricas próprias) ou Portugal. Outros 14% são fabricados em outras nações europeias como Turquia e Itália. A produção no Brasil corresponde a algo inferior a 1% do total. Em 2010, 30 lojas da Zara já estavam em funcionamento no país. São cerca de 2 mil profissionais contratados diretamente.

"No que se refere à presença comercial, o Brasil é o terceiro mercado mais importante da Inditex no continente americano, ficando atrás somente dos Estados Unidos e do México", colocou a empresa, que manifestou intenção de não abandonar a produção no país. "A Inditex prevê seguir crescendo no Brasil com a abertura de novas lojas a curto, médio e longo prazo".

*A jornalista da Repórter Brasil acompanhou a fiscalização da SRTE/SP como parte dos compromissos assumidos no Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo - Cadeia Produtiva das Confecções



O HOMEM DO SÉCULO XXI: SUJEITO AUTÔNOMO OU INDIVÍDUO DESCARTÁVEL


Artigo originalmente publicado com o título “L’homme du XXIe siècle: sujet autonome ou individujetable”, na revista Réfractions, n. 12, abr.-maio 2002, p. 125-136. Também disponível em:  http://refractions.plusloin.org/article.php3?id_article=85
©2006 Revista Réfractions  ISSN 1676-5648
Eugène Enriquez
Professor Emérito da Université Paris VII e do Laboratoire de Changement Social. Doutorado em Psicossociologia e Sociologia Clínica. Membro fundador da ARIP – Association pour la Recherche et l’Intervention Psychosociologiques. Redator-chefe da revista Connexions e co-redator da Revue Internationale de Psychosociologie.

Tradução para o português de Maria Ester de Freitas.

Por que escolher um tema como esse: simplesmente porque o vínculo social, no momento atual, se desfaz cada vez mais rapidamente e porque vemos aumentar uma violência que não é a violência fundadora do direito, nem a violência necessária às relações humanas (Kant notou que, sem discordância, seríamos apenas carneiros balindo), mas uma violência por excesso, um mal radical elementar, como diria Levinas, que visa suprimir não somente o indivíduo, mas o sentido, fazendo com que nada na vida tenha sentido.
Já antes da Segunda Guerra Mundial, Freud e Valéry nos preveniram. Em O mal-estar da civilização (1930), Freud notou que nós, nas sociedades ocidentais, tínhamos chegado a um nível de “tensão intolerável”, tensão política e psíquica, e que a humanidade seria capaz de se destruir definitivamente, de forma que aquilo que lhe havia permitido progredir tornar-se- ia a causa de seu desmoronamento. Paul Valéry, por seu lado, em suas Reflexões sobre o mundo atual (1945) sublinhava o fato de que “as civilizações sabem que são mortais” e a tendência das sociedades européias a renunciar à sua missão Acrescentamos duas frases mais recentes: a primeira, de Georges Bataille: “A humanidade inteira está ameaçada a reduzir-se a um imenso sistema de escravidão para todos”; a segunda, de D. Rousset: “Os homens normais não sabem que tudo é possível”. Proponho, pois, uma visão trágica da vida, não para nos deixar invadir pela fatalidade, mas para examinar lucidamente se uma outra via é possível, se podemos fazer prevalecer a civilização, apesar das ambigüidades, sobre a barbárie. Partimos de uma constatação: 1. De um lado, a partir do século XIX, com o discurso sobre a emancipação e o progresso humano, e mais particularmente durante todo o século XX, vimos se afirmar a idéia de que o indivíduo devia e podia tornar-se um sujeito autônomo, sujeito histórico (como disse Walter Benjamin: “Todo indivíduo é um ser histórico”), sujeito de direito, sujeito psíquico e sujeito moral, portanto, sujeito de suas ações. Pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, de 1948, o homem é reconhecido, na sua eminente dignidade, como tendo direito a ter direitos. Vou traçar rapidamente essa emersão do sujeito.1 O sujeito histórico, ou seja, aquele que intervém no nível político, que contribui para definir a orientação da sociedade e que participa diretamente das decisões essenciais relativas à vida e à morte, apareceu na aurora do século V a.C., em Atenas.

O cidadão (é certo que algumas pessoas não eram consideradas como tal: os escravos, os imigrantes, as mulheres, as crianças) utilizava sua liberdade para tomar parte ativa, se desejasse, do funcionamento da comunidade. Todos os cidadãos têm o mesmo direito à palavra e devem ser ouvidos no espaço público do debate, ainda que sejam os sofistas que cativem a atenção por mais tempo. Se, após o desaparecimento da democracia ateniense, esse tipo de sujeito apagou-se (a tal ponto que La Boétie pôde se perguntar se não existiria um desejo de submissão, uma servidão voluntária, permitindo ao “Um” governar, sem freios, todos os demais) durante os períodos feudais e monárquicos, ele reaparece na Inglaterra quando do estabelecimento da Bill of Rights (Carta de Direitos) e das revoluções Americana e Francesa. É certo que nem todas as pessoas receberam, imediatamente e sem resistências, os atributos da soberania (as mulheres, na França, tiveram direito ao voto apenas em 1945), mas progressivamente os diversos segmentos de uma nação puderam intervir no debate público e influenciar o caminho da nação na direção que eles consideravam a melhor. Para que o indivíduo pudesse tornar-se um ser histórico, foi preciso naturalmente que ele se tornasse um ser de direito, ou seja, alguém que desfrute de direitos (direitos políticos, direitos civis e, mais recentemente, direitos sociais) e sobretudo que seja reconhecido como tendo o direito, como ser humano e como cidadão de um país, de gozar da totalidade dos direitos acordados (ou arrancados) ao conjunto dos cidadãos nacionais ou ao conjunto dos homens residentes num território. O sujeito de direito é, pois, um indivíduo considerado, respeitado frente a todos os outros e que está sob a proteção de uma lei semelhante para todos. É o direito que funda a liberdade real dos homens, como pensava Rousseau. Sem o direito, cada um estaria à mercê do arbítrio do tirano, do Estado, da casta ou da classe. Mas não se trata apenas de usufruir o direito. Ser um sujeito de direito significa, igualmente, assumir-se como um ator no estabelecimento das leis (seja diretamente, seja por intermédio de representantes) e agir ativamente para fundar e refundar a lei e para fornecer ao âmbito legal, assim formado, as suas fontes de legitimação. O sujeito de direito é constituído lentamente no debate contínuo contra as formas de dominação e, na maior parte do tempo, se consolida por meio de ações coletivas exemplares, que mostram sua força. Assim, não se pode esquecer que no fundamento do direito reside sempre a força, mas uma força que tende a se negar, visto que está na origem das obrigações sociais e da armadura jurídica nas quais se funda.O nascimento do sujeito psíquico é mais recente. É à psicanálise que o homem moderno deve não apenas a descoberta crucial do inconsciente e, portanto, de sua divisão estrutural, mas sobretudo do reconhecimento em si de uma atividade psíquica intensa e contínua (que não se reduz às faculdades cognitivas), outorgando um grande lugar ao jogo das pulsões, dos sentimentos, dos desejos, das fantasias e dos processos de recalque, de idealização, de projeção, etc., que animam tanto a vida dos indivíduos como a do socius. Ser reconhecido como sujeito psíquico é ser respeitado em seu fórum interior, no seu trabalho de pensamento, na sua atividade de sublimação, ser protegido das “mortes psíquicas”, realizadas pelos adversários que são, às vezes, os pais, e aparecer como “o mais insubstituível dos seres”, dando às imagens de intimidade todo o seu vigor. Reconhecer-se como sujeito psíquico é, por outro lado, aprender a se defender da fantasia da dominação total (o famoso “mestre e dono da natureza”) e se perceber como um indivíduo clivado, submetido à perda, à falta, ao trabalho de luto e ao sofrimento, dívidas a pagar para poder realizar, pelo menos em parte, o programa do princípio do prazer. O sujeito psíquico é, assim, um ser que reconhece as suas contradições e os seus conflitos, sabendo que não é totalmente senhor de sua própria casa pelo fato de existir o inconsciente, submetido à vacilação e ao medo do despedaçamento, mas capaz de fazer de suas falhas o trampolim para chegar à posição de sujeito humano e de sujeito social, estando ambos intimamente ligados, providos de uma membrana protetora (de um “eu-pele”, conforme D. Anzieu) e capazes de abrir-se ao mundo.2
Pode-se, pois, concluir que o homem está no caminho de sua autonomia, de ditar a si mesmo as próprias regras e de ter uma visão otimista do futuro. O homem não teria mais necessidade de grandes transcendentes para conduzir a sua própria vida. 2. Mas, por outro lado, ao mesmo tempo, vê-se surgir três problemas fundamentais: a) o reino do dinheiro, tornado um fetiche sagrado; b) o aumento do poder do Estado; c) um “retorno” identitário* ao grupo a que se pertence, e crença nos seus fundamentos. Vou tentar ser mais preciso sobre esses três pontos e ver em que medida essa evolução favorece a evolução da autonomia do sujeito ou, ao contrário, a sua submissão ainda mais forte. A partir disso, tentarei verificar a possibilidade de algumas portas de saída.

A. O REINO DO DINHEIRO

Está ligado à submissão cada vez mais clara de todas as nações à lei do mercado mundial, produzida pela vitória da racionalidade instrumental. Com efeito, o que triunfou a partir do século XIX e, de maneira mais evidente ainda, ao longo do século XX, não foi a racionalidade do homem tal qual fora vislumbrada no século das Luzes e pela Revolução Francesa, racionalidade dos fins últimos e dos valores irrigados pelos sentimentos e pelas paixões, tal como nos ensinaram Rousseau e Goethe, mas somente a racionalidade instrumental, aquela se interessa apenas pelos meios a serem utilizados e que responde só à questão: como? Jamais à questão: por quê? Essa predominância se traduz pelo surgimento apenas da racionalidade econômica, aquela que permite o cálculo dos melhores meios e dos melhores métodos, cálculo de custos e de vantagens, e que submete todo mundo ao reino do dinheiro. Essa racionalidade deformada, limitada, sinaliza o advento de uma forma de pensamento e de um estilo de ação perverso, já antecipado no século XVIII pelo marquês de Sade, ao dizer que, se o homem fosse totalmente livre, seria livre para se vender, conduzido à “venalidade generalizada”. E que, se todos os homens fossem iguais, alguns poderiam usar o seu poder e a sua riqueza que são desigualmente distribuídas para intimidar outros, para rebaixá- los ao nível de objetos, para usá-los como instrumentos de seu próprio gozo. De certa maneira, podemos afirmar, sem risco de sermos contraditados, que o mundo atual se tornou sádico. Os antigos valores de mérito, trabalho, honra, prestígio e “a herança histórica, usada pelo capitalismo, inclusive a honestidade, a integridade, a responsabilidade, o cuidado no trabalho, o respeito aos outros” (Castoriadis, 1996), foram desvalorizados em prol de um único valor: o dinheiro.
“Tudo se compra e tudo se vende.” O axioma de L. Walras é o de nossa sociedade, de onde deriva a possibilidade de corrupção generalizada, tanto dos grandes como dos pequenos, comportamento perverso por excelência. Um novo impulso foi dado a essa tendência pela predominância contemporânea das estratégias financeiras. O dinheiro deve criar dinheiro, de acordo com a necessidade, sem passar pela mercadoria, e assim criar novas riquezas, passando por cima das estratégias industriais que visam o desenvolvimento. Assiste-se a um aumento contínuo das desigualdades internas e externas, a um papel preponderante dos acionistas e dos titulares de fundos de pensão em relação àquele dos administradores e trabalhadores; à globalização das trocas que beneficiam essencialmente aos paises ricos – que sabem como se proteger quando lhes parece necessário; aos avanços tecnológicos dos países já desenvolvidos (as outras nações se encontram em situação de dependência crescente, apesar das resistências), que se tornam instrumentos das grandes potências. A guerra econômica se intensifica a cada dia. Conseqüências ao nível coletivo: dissolução do vínculo social, exclusão ou “desvinculação social” (R. Castel, 1995), competição exacerbada, pilhagem do planeta, enfraquecimento dos movimentos sociais, diminuição das lutas sindicais, e, por outro lado, importância crescente das empresas, que querem ser “as instituições divinas”, e de suas conseqüências ao nível individual: os indivíduos devem se integrar, ou melhor, se identificar às organizações das quais fazem parte, idealizalas, colocando os valores organizacionais – seu próprio ideal do ego – no lugar dos seus próprios valores, transformar-se em instrumentos submissos, dóceis mesmo, e sobretudo acreditar, se lhe disserem e se eles se sentirem responsáveis enquanto sujeitos, que estão a caminho da autonomia. É a psicologização dos problemas que se coloca em prática.
Uma instituição e uma organização não são menos organizadas ou geridas dentro dessa concepção. Se elas fracassam, é sempre ao indivíduo que a responsabilidade é imputada. Assim, os indivíduos estão sempre em situação de prova, em estado de estresse, sentem queimaduras internas, tomam excitantes ou tranqüilizantes para dar conta da situação, para ter bom desempenho, para mostrar sua “excelência” (entramos numa civilização de dopping); e, quando esses indivíduos não são mais úteis, eles são descartados apesar de todos os esforços despendidos. O homem tem, cada vez mais, a solidão como companheira. Ele pode se transformar em alguém “inútil ao mundo”, para retomar uma velha expressão da Idade Média, um excluído definitivo, sem esperança de um dia voltar a ser “incluído”. No século XIX, as pessoas que formavam o “exército de reserva do capital” eram excluídas temporariamente do processo produtivo, mas sabiam que um dia poderiam voltar a fazer parte do grupo de incluídos, o que não é o caso atualmente. Para dizer algo sobre o futuro, que parece bem sombrio a esse respeito, as novas tecnologias favorecem a eliminação de milhares de pessoas no mercado de trabalho. A racionalidade instrumental e as estratégias financeiras atingem, pois, o objetivo: utilizar o sujeito, que acredita ser em grande parte autônomo, para superexplorá- lo e aliená-lo. O processo de alienação é tão mais insidioso que muitas pessoas colaboram com a própria alienação. Tornam-se utensílios manuseados pelos dominantes no alto de sua potência. Estes últimos tornam- se cada vez ou mais perversos ou mais paranóicos porque têm o gosto pelo poder desmedido. A perversão pode, aliás, assumir duas formas: a) uma forma ativa, na qual o perverso utiliza, com gula, os demais para torná-los dependentes e submissos, e contribuir à sua própria servidão e humilhação; b) uma forma passiva, a apatia, tal como já observada no século XVIII por Sade. O apático é um indivíduo que não sente nenhuma emoção. É insensível, e vê os demais apenas como “coisas” abstratas, que podem, portanto,
ser eliminadas física ou psiquicamente, se necessário, sem que ele se sinta nem alegre nem incomodado (esse tipo de pessoa se desenvolve em nossas sociedades, que dizem que os chefes não devem ter “états d’âme”,** e devem apenas fazer o seu trabalho da maneira mais perfeita). Esses indivíduos (paranóico, perverso ativo, perverso apático) são naturalmente hostis às pessoas desviantes, não-conformes, aos sujeitos que pensam que são “causa de si”, como indicou M. Enriquez (1984). O mundo atual tende a tornar-se o do crescimento do desprezo, da generalização da desconsideração, do desrespeito, da recusa da diferença a que tem direito todo ser humano.

B. AUMENTO DO PODER DO ESTADO

Se o indivíduo é submetido às estratégias financeiras, ele o é igualmente ao Estado do qual é cidadão. A esse respeito é preciso apontar, com H. Arendt (1973), para uma contradição entre os direitos do homem, que visam o universal no homem, e os direitos do cidadão, que insistem na especificidade desse homem e seu sentimento de pertencer a uma nação, o que faz surgir e desenvolver o apátrida, o refugiado. É certo que ele tem direitos no seu país, mas direitos que dependem apenas da boa vontade do Estado, mesmo daquele que é democrático. Deve respeitar e submeter-se a todas as leis, mesmo àquelas que lhe parecem injustas ou arbitrárias, e mesmo se for tratado como cidadão de segunda classe, como o são os trabalhadores informais da América Latina. Ele é também submetido à vontade de seu Estado de fazer guerra às demais nações (que foi no século XX, na maior parte do tempo, uma guerra ideológica, total e de massa) ou à suas próprias determinações (guerra civil, genocídios do tipo que se viu no Camboja, em Ruanda, por exemplo). O homem não deve ser apenas um trabalhador que contribui para a riqueza de sua nação, ele deve ser e
querer ser um guerreiro. Não é sem motivo que E. Jünger, em seu livro Le travailleur et la mobilisation totale (1930), unificou as figuras do trabalhador e do guerreiro: todo trabalhador permite à sua nação ganhar, portanto ele é um guerreiro; todo guerreiro realiza um trabalho necessário à nação – preservá-la de outras ou de levantes internos –; ele é, portanto, um trabalhador. De qualquer forma, o Estado pode exigir dele uma identificação completa aos seus valores – como no caso da Alemanha nazista e do sistema totalitário soviético – e definir quem tem o direito e o dever de fazer parte do Estado-nação e quem deve ser descartado, rejeitado ou eliminado. Algumas pessoas tornam-se indivíduos cuja “vida é indigna de ser vivida”. Aquele que não é incluso no discurso do amo r comum não é digno de viver, daí os campos de concentração e os campos de morte.

Michel Foucault escreveu estas linhas que nos convidam a meditar: “O homem, durante milhares de anos, era aquilo que dele pensava Aristóteles, um animal vivo e cada vez mais capaz de uma existência política. O homem moderno é um animal vivo cuja vida é constantemente questionada, não importa o que ele faça”.3 Ele mostra, assim, que nascia a biopolítica, ou seja, que a vida tal como ela era, tornara-se uma questão política. O que leva G. Agamben, autor de Homo sacer (1997) a dizer “A politização da vida constitui o acontecimento decisivo da modernidade”. Assim, o homem dito autônomo, o homem sacralizado e sagrado dos tempos modernos, pode vir a ser como o Homo sacer do antigo direito romano, um indivíduo não sacrificável – pois isso significaria que ele ainda é parte da espécie humana –, mas sim um indivíduo passível de ser morto sem sanção. O Estado total (ou totalitário), que coloca em prática essa biopolítica, funciona sob o modo da exceção que se torna a regra (o que leva C. Schmitt, teórico do Estado total, a dizer: “a fonte da lei é a palavra do Führer” – quanto aos stalinistas e aos maoístas, sabemos que ambos tinham sempre razão).O homem pode ser assim rebaixado à condição de sub-homem. Vê-se, então, que o homem levado em consideração enquanto homem (e não enquanto o que ele era antes: camponês, artesão, comerciante, etc.) pode ser totalmente sujeitado. Retire-se dele a cidadania, e ele não é mais um homem; rebaixe-o à condição de animal, e ele não é mais um homem. E tornado igual a todos, ele pode tornar-se um idêntico, um clone, e pode ser substituído por um outro idêntico (a racionalidade instrumental, que considera cada um apenas um objeto, reforça essa tendência). Quanto aos dominantes, cresce a tentação de serem paranóicos, perversos ativos e perversos apáticos (carrascos que se habituam a tudo). É certo que não estamos mais nos tempos do Estado total ou totalitário. A democracia representativa triunfou. Mas, de fato, como vimos, é a regra do dinheiro que adveio. O que torna o sujeito menos dominado pelo Estado (exceto nas ditaduras) é substituído pela sua sujeição ao dinheiro. Os indivíduos tornam-se meros consumidores ou “mercenários”. O cinismo se desenvolve. Os políticos parecem cada vez menos críveis, pois um bom número deles se deixa corromper.4 Um novo “mal-estar” está em vias de aparecer.

C. OS RETORNOS IDENTITÁRIOS

Contra todas as formas de violência (do dinheiro, do Estado), contra esses “monstros frios” (na expressão de Nietzsche), o que é possível instaurar para se recriar um mundo caloroso, agradável, e viver, no qual cada um possa ser reconhecido? Dois tipos de reações podem ser aventados:
# Uma reação no nível coletivo
Muitas pessoas tentam reencontrar suas raízes. O tema “enraizamento”, caro a Simone Weil, retoma o seu vigor. Ele se traduz por um interesse, e às vezes por uma idealização, do regional, do local, do grupo a que se pertence. Retorno a terra, às músicas e à linguagem local. Na França, percebe-se a importância dada pelos bretões e pelos corsos à utilização da língua deles, à promoção de seu reduto e à sua música popular; retorno a alguns costumes, modos e danças de antigamente. Trata-se de reencontrar um convívio, o prazer de estar junto, de conversar longamente, de afirmar sua diferença cultural, assim como os afro-americanos e os afro-brasileiros podem reconquistar uma dignidade que perderam. Trata-se de uma reação normal e sã que tem por objetivo restaurar um mundo passível de ser vivido entre irmãos e irmãs. Entretanto, essa reação envolve perigo, pois engendra perigos essenciais, tais como o retorno aos nacionalismos mais virulentos, por exemplo, o nacionalismo albanês ou sérvio, a não falar dos nacionalismos da África negra, que se traduzem pela eliminação e pelo massacre (Ruanda) de populações inteiras; a renovação dos integrismos religiosos, a proliferação de seitas, de comunidades fechadas (dos guetos), gangues de bairro etc.; enfim, um “espírito de corpo” pervertido. Se é importante respeitar as diversas culturas, como Lévy-Strauss sublinhou em Race et histoire, no qual demonstrou que nenhuma cultura pode se orgulhar de superioridade em todos os domínios sobre outra, é essencial também que os povos não se refugiem em comunidades que se querem estáticas. O comunitarismo afasta os homens uns dos outros, e pode fazer renascer aquilo que Freud (1930) chamou de o “narcisismo das pequenas diferenças” e que G. Devereux (1972) julga em termos severos: “Se a gente é apenas um capitalista ou um proletário, um ateniense ou um espartano, a gente está bem perto de não ser grande coisa ou mesmo coisa alguma”.
# Uma reação no nível individual
Vêem-se cada vez mais pessoas que se voltam à sua própria identidade, que cuidam apenas de “si”, de sua vida privada, de seus investimentos cotidianos, de sua família. O homem, então, não se sente mais fazendo parte de uma espécie humana e não participa mais do trabalho da civilização. Considera os outros apenas obstáculos ou objetos de prazer.
Ademais, à força de ser só e responsável, o homem acabou por considerar seu eu “como um fardo”, conforme observado por R. Sennett (1974). Ele está cansado de si mesmo (A. Ehrenberg, 1998) e se torna desamparado e deprimido, motivos para recorrer às drogas para manter-se de pé e ter o sentimento de ser criativo. O estresse permanente que assalta os atores sociais lhes impede de serem criativos (desenvolvimento do conformismo), e eles acabam por mergulhar na mediocridade, na “insignificância” (Castoriadis, 1996), sinais incontestes da barbárie e de uma incapacidade para a transgressão. Se se reconhecer como sujeito é essencial, ver-se apenas como um individuo indiferente aos outros e ocupado apenas com suas próprias preocupações é simplesmente mortífero. Existe uma saída? Pode-se reconstituir o vínculo social? Scott Fitzgerald dizia: “É preciso saber que o mundo é sem esperança e, contudo, decidir mudá-lo Eu gostaria de retomar igualmente um verso do poeta alemão Hölderlin, do qual gosto muito: “Lá onde crescem os perigos, cresce também a salvação”. Atualmente as pessoas são cada vez mais capazes de fazer o diagnóstico que acabo de apresentar. Podemos assinalar os sinais positivos: a família se reconstrói, mesmo que o faça com mudanças. Não se proclama mais a morte da família, como em 1968. Ela é, apesar de tudo, um lugar de calor e de intimidade. Surgem numerosas associações (os “restos du coeur”,*** as ações contra o desemprego, direito à habitação, as redes SOS de amizade, etc.). Os grandes discursos ideológicos desapareceram. Fracassaram porque se tornaram mortíferos. Mas esse desaparecimento não impediu, apesar de tudo, a aparição, há alguns anos, de movimentos sociais engajados, nos quais os objetivos não são sempre precisos, mas que questionam a sociedade atual. É certo que não é possível dizer precisamente quais serão as conseqüências de suas ações. Isso não impede que esses movimentos existam e que já se façam ouvir. Progressivamente, as pessoas se põem a dizer que não querem mais um Estado totalitário e que tampouco querem um Estado liberal que não se preocupe mais com a proteção social. Querem um Estado de outro tipo, que exponha os problemas em sua nudez, tentando resolver as questões urgentes, consultando as populações e levando em conta suas opiniões, e não seja um Estado estritamente gestor. Existe, pois, uma demanda pela formulação de novos ideais que não são grandiosos, mas que também não são puramente ideais de gestão. Ademais, como se sabe que não se pode pedir tudo ao Estado, vêem-se ações assumidas cada vez mais por grupos e associações (anti-racistas, auxílio aos clandestinos, de socorro aos carentes, etc.).

Estamos assistindo a uma lenta mas real renovação da sociedade civil. Esse é um ponto extremamente importante. Não se pode pedir tudo ao Estado, então é preciso pôr as mãos na massa, tanto individual quanto coletivamente. O indivíduo não deve se perder no coletivo, deve manifestar plenamente sua individualidade e ao mesmo tempo trabalhar com os outros para construir alguma coisa. Nada pode ser feito sem envolvimento individual forte nas ações políticas, que são pensadas, discutidas. E as pessoas começam a crer.5 Um outro ponto que me parece muito importante é a renovação da noção de ética. Falou-se muito de ética nos negócios. Não creio nela, e ela é perigosa, pois se trata mais de uma deontologia do que de ética, mais uma prescrição do que propriamente princípios reguladores. Mas a preocupação ética torna-se importante em todos os lugares, não somente nos comitês de bioética ou na vida das empresas, mas na vida de cada um de nós. Atualmente nos recolocamos algumas questões fundamentais que eram ocultadas.

Eu gostaria de citar algumas delas, em particular as questões enunciadas por Max Weber: o que é a ética da convicção ou a ética da responsabilidade? Até que ponto podemos ter convicções sólidas e discutir fortemente a partir do que pensamos, e ao mesmo tempo nos sentir responsáveis pelas conseqüências de nossas ações? Podemos também nos interrogar sobre o fato de que, mesmo que tenhamos convicções estabelecidas, elas não são necessariamente justas, e que, pois, é preciso coloca-las à prova da comunicação e da discussão. É por isso que parece muito importante que se desenvolva o que Habermas chamou de ética da discussão (1983). O importante é que as pessoas tenham o máximo possível de informações, e que possam discutir no espaço público para permitir que os problemas sejam verdadeiramente tratados. Estamos longe disso. A informação que temos não é nem total nem pertinente. Porém, a demanda por informação aumenta.

O indivíduo começa a perceber que não é apenas à base de estimulantes que ele pode encontrar saídas, que não é somente adotando todas as próteses possíveis que ele pode se adaptar, mas que é principalmente se interrogando sobre as suas capacidades, seus limites, sua mortalidade, individualmente e com os demais. O indivíduo então se confessa capaz de um trabalho de luto, de um trabalho de interrogação, que pode levá- lo a analisar-se, a trabalhar o seu “fórum interior”, não para fazer análise pela análise, mas para tentar saber por que faz tal coisa e que sentido lhe atribui. É dizer que retorna de maneira fundamental a algo que estava em vias de desaparecer: a questão do sentido. Os seres humanos são seres em busca de sentido. É a definição fundamental de ser humano e ser social. De outro modo, seríamos apenas animais totalmente programados. Os sujeitos se dão cada vez mais conta da identidade dos problemas com os quais se defrontam. São capazes de começar a se interrogar. É necessário que haja pessoas que possam ajudá- los a analisar o que estão fazendo, a fim de que possam pensar novos projetos, construir novas instituições, transgredir as regras que não valem nada e guardar aquelas que valem algo, retomar o que haviam esquecido, fazer experimentação social e, talvez, um dia formar um novo paradigma social e humano.Esse paradigma implicaria ter-se maior consideração pelos outros. Atualmente nos perguntamos: “Em que consiste a dignidade do ser humano? O que é o respeitar o ser humano?”Existe um esforço nesse sentido. A renovação da ética, a emergência de um desejo de reencontrar a alegria em trabalhar e em viver junto, o desejo de amizade, de convívio pode reconstruir o tecido social (Freud viu isso): é o amor mútuo (a libido associativa), que está no fundamento do vínculo social, e não somente a morte mútua. É graças a ele que se pode vislumbrar o “enfraquecimento do Estado”.

Existem em nossas sociedades muitas mortes, mortes físicas, mortes psíquicas, mas é o amor –seja como amor total, seja como ternura, amizade, camaradagem, solidariedade, fraternidade – que deve nos animar. É preciso pensar não apenas na liberdade e na igualdade. A fraternidade é também alguma coisa de essencial. É a percepção real de que as sociedades não podem se fundar nem perdurar se não desenvolvem um mínimo de prazer, até o regozijo de estar junto. Eu diria que é preciso reinstaurar o que Freud dizia: é preciso, mesmo assim (e é muito difícil), poder seguir o programa do princípio do prazer. E, naturalmente, a realidade é sempre contra. Mas o programa do princípio do prazer é, levando em conta a realidade, tentar se reconhecer mutuamente, fazer as coisas junto, e me parece que as pessoas mais mortíferas, sempre mais numerosas, já começam a desencantar um pouco. O vínculo social não se construirá a não ser que queiramos construí-lo, e se esse desejo for compartilhado por um grande numero de pessoas. O voluntarismo, naturalmente, não é suficiente, mas sem ele nada é possível. A revolução não pode ser feita em um dia, mas se faz todos os dias nas relações cotidianas que mantemos, como já pensava W. Reich. E aí está a entrada para um convívio verdadeiro, a edificação de uma democracia que mereça esse nome, na qual o amor e a alegria estejam e continuem a estar presentes. Resta, pois, trabalhar nesse projeto, tentando afastar as tendências mortíferas (sempre reconhecendo-as, pois a pulsão de morte é sempre operante), e fazer triunfar, tanto quanto possível, o prazer e o amor mútuo. Isso pode parecer utópico, mas como eu já disse tempos atrás: “As sociedades que não sonham são sociedades que morrem”. Certamente a divisão originária não cessará, e é importante que permaneça para lançar os movimentos sociais, instituir os desejos. Caso contrário, há o risco de recriar as sociedades “holistas”, fusionais, sem conflitos e sem contradições. De qualquer forma, é preciso lembrar do conselho de Maquiavel: “E muitas se imaginaram repúblicas e monarquias que nunca foram vistas nem conhecidas como verdadeiras. Com efeito, o que vivemos se distancia tanto do que deveríamos viver que aquele que abandona o que está fazendo para dedicar-se ao que deveria fazer acaba mais por se destruir do que se preservar”. Os profetas se enganaram: não há o fim da historia, não há sociedades felizes nem futuro radioso. Aqueles que acreditaram nisso destruíram os homens e as sociedades em que viveram. E, no entanto, nem por isso é preciso renunciar à visão de sociedades mais justas, menos alienantes, nas quais os homens seriam mais inclinados à sublimação que à idealização ou ao recolhimento em si mesmos. Se, como pensava Castoriadis (1997), “falar já é sublimar”, estamos prontos para dar vida ao aforismo de Nietzsche: “É uma bela loucura, falar – com isso, o homem dança sobre e acima de todas as coisas”, e poderemos, ao aceitar a divisão originária no social e no individual (o inconsciente e o consciente permanecem clivados), encontrar aquilo que Nietzsche chamou de caos; ou seja, favorecer a criação de uma sociedade que “dança” e não a de uma sociedade que “pesa”.6



NOTAS

1 Retomo aqui uma passagem de meu texto Émergence du sujet et formes d’autorité, publicado na revista Pour, n. 165, GREP, 2000.
2 Fim da reprodução do artigo citado.
3 Citado por G. Agamben.
4 Não se pode esquecer que, se a “virtude” está no fundamento da democracia, ela é sempre corruptível. Tanto Maquiavel quanto Montesquieu insistiram nesse ponto.
5 Giordano Bruno já afirmava: “Descobrirás em ti mesmo o meio de progredir à medida que descubras uma identidade distinta a partir da pluralidade [...] A partir de múltiplos elementos, adaptar a si mesmo tudo aquilo que tenha forma e unidade”. Citado por U. Eco (1965).
6 Nietzsche escreveu: “É preciso ter o caos em si para dar à luz uma estrela que dança”, e ele opunha a música de Carmen, de Bizet, à de Wagner, qualificando a primeira de música que “dança” e a segunda,
de música que “pesa”.

Notas da tradutora

* No original “repli identitaire”, que pode significar um recurso de isolamento do grupo de referência ou um fechamento do indivíduo em si mesmo. Estamos traduzindo como ato de retorno a si e/ou ao grupo, em detrimento do mundo exterior e do social.

** Literalmente, “estados de alma”. Usamos o termo para significar alguém que não sente e/ou expressa emoções, empatia, estresse ou sensibilidade ao outro; ou ainda, que é completamente indiferente ao que possa acontecer ao outro afetado por sua ação ou decisão.

*** Refere-se literalmente à cadeia de Restaurantes do Coração, formada, sustentada e gerida por voluntários, que atendem a populações carentes em toda a França.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, G. Homo sacer. Paris: Seuil, 1997.
ARENDT, H. L’imperialisme. Paris: Seuil, 1984.
CASTEL, R. Les métamorphoses de la question sociale. Paris: Fayard, 1995.
CASTORIADIS, C. La montée de l’insignificance. Paris: Seuil, 1996.
DEVEREUX, G. Ethnopsychanalyse complémentariste. Paris: Flamarion, 1972.
ECO, U. l’OEuvre ouverte. Seuil. Paris: 1965.
ENRENBERG, A. La fatigue de soi. Paris Odile Jacob, 1998.
ENRIQUEZ, M. Au carrefour de la haine. Paris L'EPI, 1984.
FREUD, S. Malaise dans la civilisation. Paris: PUF, 1971.
HABERMAS, J. La théorie de l’agir communicationnel. Paris: Fayard, 1983.
JÜNGER, E. La mobilisation totale. Paris: Gallimard, 1990.
LÉVINAS, E. Quelques réflexions sur la philosophie de l’hitlérisme. Paris: Rivages Poche, 1997.
LÉVY-STRAUSS, C. Race et histoire, Paris: Folio, 1952.
SENNETT, R. Les tyrannies de l’intimité. Paris: Seuil, 1979.
VALÉRY, P. Regards sur le monde actuel et autres essais. Paris: Gallimard, 1945.
WEBER, M. Le savant et le politique. Paris: Plon, 1959.



terça-feira, 9 de agosto de 2011

Cor da pele influencia relações profissionais

Por: FELIPE GUTIERREZ
Fonte: http://classificados.folha.uol.com.br/empregos/955263-cor-da-pele-influencia-relacoes-profissionais-mostra-pesquisa.shtml
Para 71% dos brasileiros, as relações profissionais são influenciadas pela cor da pele. É o tipo de convívio mais suscetível à etnia, acima da maneira como as pessoas são atendidas pela polícia e pela Justiça.
Esse é o principal resultado de uma pesquisa divulgada recentemente pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) feita com cerca de 15 mil entrevistados no Distrito Federal e nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Paraíba e Amazonas.
O estudo Pesquisa das Características Étnico-Raciais da População não tinha como intenção identificar se essa influência é positiva ou negativa.
Para a chefe da divisão de indicadores sociais do IBGE, Ana Lucia Saboia, perguntar se o impacto é bom ou ruim não é eficaz. Os entrevistados, diz ela, negam ser preconceituosos.
Entre as pessoas que se disseram negras, 82,6% responderam sim à pergunta se "a raça ou a cor" influenciam o trabalho. O menor índice foi entre aqueles que se declararam indígenas: 64,7% acham que esse é um fator que altera as relações.
Para Saboia, o fato de o trabalho ter sido apontado como a relação na qual há mais influencia se dá porque essa é "a atividade de inserção social mais importante para os indivíduos".
O frei David Santos, diretor-executivo da ONG Educafro, diz que a pesquisa do IBGE "conseguiu trazer à tona a realidade, ou seja, que o índice de pessoas que sofrem discriminação por causa da cor ou etnia é exageradamente maior no ambiente de trabalho".
O caso de Simone André Diniz, 33, foi marcante para a história do combate ao preconceito no país. Quando ela tinha 19 anos, denunciou uma empregadora que buscava uma doméstica branca.
Na época, o Ministério Público recomendou arquivar o caso, o que foi feito pelo juiz. Mas a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) recebeu uma denúncia, e, em 2006, condenou o Brasil.
Diniz ganhou R$ 36 mil de indenização do Estado, mas o processo ainda tramita. Ela espera receber bolsa para cursar faculdade -- uma das recomendações da OEA.
Para Diniz, a situação no país não mudou. "Entre uma branca e uma negra, costumam escolher a branca, e dizem 'não é o seu perfil que nós queremos'. É sempre assim", afirma.
Sofia Helena Gomes ouviu de seu chefe imediato no setor de prevenção de perdas de uma rede varejista que deveria agradecer pelo emprego. Como ela era "velha e negra", não conseguiria outro, emendou ele.
Gomes processou o antigo empregador por assédio moral, e ganhou na primeira instância na Justiça do Trabalho. Ela também move processo na vara criminal, mas o caso ainda não foi julgado.

Assédio moral atinge 66% dos bancários no Brasil

Por: PATRÍCIA BASILIO
Fonte: http://classificados.folha.uol.com.br/empregos/951999-assedio-moral-atinge-66-dos-bancarios-no-brasil.shtml

Cinco caixas de antidepressivos por mês e uma tentativa de suicídio. Essa é a realidade do supervisor Wagner Araújo, 33, há dois anos, depois de sofrer ataque nervoso no banco em que trabalha. Desde 2009, ele está afastado pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).
Além da pressão por metas, Araújo conta que era chamado de Gardenal (remédio psiquiátrico) por colegas. "Os chefes gritavam comigo, e eu perdia o controle emocional."
Na capital paulista e em Osasco, 42% dos bancários dizem ter sido vítimas de assédio moral, indica pesquisa do sindicato da categoria com 818 profissionais, obtida com exclusividade pela Folha.
Em nível nacional, o problema atinge 66% dos bancários, segundo consulta a 27.644 trabalhadores feita em 2011 pela Contraf (Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro).
"As principais queixas são cobrança abusiva, humilhação e falta de reconhecimento", lista Juvandia Moreira, presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo. A entidade fechou parceria com bancos no início do ano para criar canal de denúncias de assédio moral.
Segundo Magnus Apostólico, diretor da Febraban (Federação Brasileira de Bancos), as queixas recebidas serão utilizadas para "melhorar as relações de trabalho".
No TRT-SP (Tribunal Regional do Trabalho), o total de ações por assédio caiu 3,6% no primeiro semestre de 2011, em relação ao mesmo período de 2010. Uma razão é a capacitação de gestores. Até junho, 22.739 processos tramitavam em primeira instância.

HUMILHAÇÃO

Receber medalhas na festa de confraternização da empresa é, na maioria das vezes, motivo de orgulho. Para Vivian Nascimento, 27, o prêmio significou o contrário.
Nova em uma multinacional do setor de informática, a analista de suporte foi classificada pelos colegas como uma das piores funcionárias do departamento. Tudo com o aval dos chefes diretos.
Na festa de fim de ano de 2008 -na qual não foi porque estava de plantão-, recorda ela, foi organizada cerimônia com entrega de faixas e medalhas aos primeiros colocados em cada categoria.
"Fui nomeada uma das funcionárias mais desesperadas, perdidas e sem noção da equipe", conta ela. Nascimento foi demitida dois anos depois da "premiação", em um corte de funcionários, e entrou com processo contra a empresa por assédio moral.
Com a chegada da geração Y (nascidos entre 1978 e 2000) nas empresas e a maior competitividade entre companhias, casos como o de Nascimento são cada vez mais comuns, apontam especialistas.
"Os jovens são intolerantes em relação a problemas no trabalho", argumenta Roberto Heloani, professor de psicologia do trabalho da Fundação Getulio Vargas. "Além disso, são cada vez mais cobrados por resultados."
A luta contra o tempo, afirma o professor, é um dos fatores responsáveis pelo assédio moral do chefe com seus funcionários. "Como muitos [desses gestores] são jovens, o assédio vem de formas diferentes, como brincadeiras ofensivas e boicote de trabalho [o empregado é excluído de projetos, por exemplo]."
Ser humilhado pelo chefe, no entanto, não é situação exclusiva no escopo do assédio moral no trabalho, destaca o advogado trabalhista Alexandre Lindoso. "Hoje os próprios colegas são responsáveis pela humilhação."
O motivo, explica, é o aquecimento do mercado, que aumenta a empregabilidade, mas incentiva o "espírito competitivo dos profissionais". Casos de assédio moral horizontal -quando o agressor não é chefe da vítima- já são reconhecidos pela Justiça. "Se o problema ocorreu embaixo do guarda-chuva da empresa, ela é a responsável", esclarece Lindoso.
Terezinha Rodrigues, 53, foi alvo dos dois tipos de assédio moral: foi humilhada por superiores e colegas. Contratada para atuar como auxiliar de codificação em um órgão público -como comissionada-, foi obrigada a trabalhar com malote e como auxiliar de portaria.
"Os funcionários falavam que iam me dar um par de patins para eu trabalhar mais rápido", diz. Em 2010, após 30 anos na empresa, foi demitida e entrou com processo na Justiça.

sábado, 6 de agosto de 2011

O mito do bônus e seus perigos


Autor: Ladislau Dowbor (*)

O artigo de Nic Fleming, (The bonus myth how paying for results can backfire, New Scientist 12 April 2011) refresca realmente o ambiente. Como ele mesmo escreve, “muitos economistas acreditam que os incentivos contam toda a história. No entanto, os fatos (the evidence) nos dizem que eles se enganam”. Uma série de pesquisas recentes mostra que temos aqui uma faca de dois gumes. As pessoas ficam sem dúvida contentes em receber um bônus, mas à medida que o espírito do bônus se instala, as pessoas perdem de vista os objetivos reais das suas contribuições profissionais, e os resultados se invertem.
A cultura do bônus sem dúvida se generalizou, inclusive em áreas como educação, saúde e semelhantes. Parecia tão óbvio que por uma recompensa as pessoas se esforçariam mais, que esqueceram de pesquisar se realmente isto se verifica. “Pode vir como um choque para muitos descobrir que um amplo e crescente corpo de dados (evidence) sugere que em muitas circunstâncias, pagar por resultados pode até fazer as pessoas ter uma performance ruim, e que quanto mais se paga, pior a performance”.
Na realidade, o que as pesquisas mostram é que ao promover o estímulo da recompensa por resultados – a “cenoura” para fazer as pessoas trabalharem mais – aumenta o estímulo financeiro, mas reduz-se progressivamente a motivação intrínseca do trabalho bem feito, do prazer da competência. De certa forma, “quanto mais se recompensa as pessoas por fazer algo, mais a sua motivação intrínseca tende a declinar”. “Os estudos sugerem que oferecer recompensas pode travar a tendência das pessoas fazerem as coisas pelo prazer da realização, uma ideia conhecida como efeito de sobre-justificação (overjustification). Esta foi a base de uma série de livros de Alfie Kohn nos quais ele argumenta que recompensar crianças, estudantes e trabalhadores com notas, incentivos e outras ‘propinas’ leva a um trabalho inferior no longo prazo…Os que recebem os bônus inevitavelmente jogam pelo seguro, tornam-se menos criativos, colaboram menos e se sentem menos valorizados”.
Ainda que a reação natural e um pouco cínica nos faça duvidar, o fato é que uma meta-análise (sistematização de análises anteriores) de 128 pesquisas coordenada por Edward Deci, da Rochester University (NY), sugere que se trata de dados muito firmes. Segundo Deci, “os fatos são absolutamente claros. Não há dúvidas que praticamente em todas as circunstâncias em que as pessoas estão fazendo coisas para obter recompensas, recompensas extrínsicas tangíveis minam a motivação intrínseca…uma vez que se torna as pessoas dependentes de resultados e não dos comportamentos, para obter as recompensas, os dados mostram que as pessoas irão tomar o caminho mais curto para estes resultados”.
Não estamos sonhando. Fica claro, no artigo de Fleming, que quando se está fazendo coisas estúpidas apenas por dinheiro, o bônus não irá reduzir uma motivação que o trabalhador já não tinha. Mas no conjunto, a dependência do bônus, da recompensa material calculada a cada esforço, tende finalmente a desviar a atenção das pessoas dos resultados mais amplos do processo produtivo, e isto é particularmente importante nas atividades densas em conhecimento que ocupam cada vez mais espaço.
Geraint Anderson, que trabalhou anos em bancos em Londres, e escreveu Cityboy sobre o trabalho no meio financeiro, tão dependente de bônus, resume o assunto: “Se você pode roubar o avanço dos seus colegas, buscar crédito pelas realizações deles, tocar a sua própria corneta e puxar o saco do seu chefe (kiss your boss’s arse), você pode sim aumentar o seu bônus”. Anderson, que ganhou dois bônus anuais de meio milhão de libras cada, sabe de que está falando.
Os argumentos trazidos por Fleming são importantes. Seguramente não se aplicam a todas as circunstâncias. Mas da mesma forma como estamos deixando de acreditar nas bobagens do tipo que o ser humano se guia pela maximização racional das vantagens individuais, estamos começando a repensar a teoria da cenoura. Não somos coelhos. E os desastres financeiros gerados pelos administradores que mais recebem bônus no planeta constituem um argumento interessante.

(*) Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e da UMESP, e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de “Democracia Econômica”, “A Reprodução Social”, “O Mosaico Partido”, pela editora Vozes, além de “O que Acontece com o Trabalho?” (Ed. Senac) e co-organizador da coletânea “Economia Social no Brasil“ (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org‘

Fonte: http://adunicentro.org.br/novo/?p=1155

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

O ponto fraco do ensino forte (trecho)


Por que as escolas tradicionais - as primeiras colocadas nos exames nacionais de avaliação - podem causar danos aos alunos
MARTHA MENDONÇA COM MARGARIDA TELLES
Revista Época - 29/07/2011

"Foram os piores anos da minha vida.”
A frase ainda é dita com sofrimento pela estudante carioca Chanel de Andrade Rodrigues, de 18 anos. Ela está no 1o ano da faculdade de artes, mas não esquece o período em que estudou no Santo Agostinho, do Rio de Janeiro, um dos colégios mais tradicionais e bem-conceituados do país. Do 7o ano do ensino fundamental ao 1o ano do ensino médio, passou seus dias perdida entre aulas que não acompanhava, um enorme volume de conteúdos para memorizar, provas difíceis, notas baixas e um séquito de professores particulares a cada final de ano letivo. Na escola, não gostava de sair para o recreio e não comia nada. Em casa, compensava a ansiedade comendo demais. Na escola anterior, menos rígida, onde tirava boas notas, costumava nadar e fazer aulas de dança. No Santo Agostinho, evitava as aulas de educação física. Chanel entrou em depressão e engordou 20 quilos.
A mãe tentou convencê-la a fazer terapia, mas ela se recusava. “Eu só queria ser invisível”, afirma. “Odiava a competitividade que estava sempre no ar.” Só depois que Chanel foi reprovada, no 1o ano, sua mãe decidiu trocá-la de escola. (Procurado por ÉPOCA, o Santo Agostinho não respondeu aos pedidos de entrevista.) O caso de Chanel é apenas um entre centenas que revelam uma realidade incômoda: o custo emocional alto – muitas vezes altíssimo – do modelo de eficiência adotado naquelas escolas que exigem alto desempenho dos alunos e garantem todo ano boas colocações nos melhores vestibulares.
Consideradas as melhores do país, quase sempre campeãs nas provas nacionais de avaliação, as escolas de ensino tradicional representam, na mente de muitos pais, uma esperança de sucesso para a vida dos filhos num mercado de trabalho competitivo. Apesar de seus resultados inquestionáveis e da procura crescente por escolas desse tipo, esse modelo agora começa a ser mais e mais questionado por seus efeitos colaterais.
O ensino tradicional surgiu na Europa do século XVIII como um modelo em que os alunos são ensinados e avaliados de forma padronizada. Ele se inspira na ideia de que a mente das crianças é uma tabula rasa, um espaço em branco sobre o qual os diversos conteúdos – gramática, matemática, ciências, história etc. – devem ser inscritos seguindo um método rigoroso de exposição e avaliação. Mais do que qualquer outra aptidão, valoriza o acúmulo de conhecimento: quanto mais fatos e fórmulas o aluno aprende, mais bem avaliado ele é.
Há, ainda, uma forte pressão por desempenho nas provas e um grande volume de conteúdo a estudar. As escolas tradicionais também costumam ser mais rígidas em regras de comportamento, como respeito ao horário, frequência às aulas, uso de uniforme e atitude no recreio. Apesar de ter incorporado conceitos pedagógicos mais modernos, a essência do modelo tradicional de ensino permanece a mesma – e a educação tradicional está em alta no mundo, com filas de espera para matrículas e salas abarrotadas de alunos.
A grande procura por uma vaga numa dessas escolas se explica pelo desempenho acima da média de seus alunos. No Brasil, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que classifica as escolas públicas e particulares a partir das notas tiradas numa prova feita pelos alunos, é decisivo para a família na hora de escolher onde matricular seus filhos. Há anos, os colégios mais tradicionais e rígidos ocupam o topo da lista. “É comum hoje em dia pais e mães compararem as posições das instituições em que seus filhos estudam. Se os resultados das escolas não são bons, bate o sentimento de que se está fazendo algo errado”, afirma Quézia Bombonato, presidente da Associação Brasileira de Psicopedagogia.